Prevista para terminar em 08/10, a exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença na América Latina” com mais de 270 obras, provenientes de coleções públicas e privadas, de meados do século XX até os dias atuais, em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre, fechou suas portas neste domingo, 10/09, mais de um mês antes da data prevista.

A abordagem da mostra era, em síntese, a diversidade de expressão de gênero – o que incomodou, provocou tumulto e manifestações contrárias por parte de um grupo de direita, que acabou pressionando a instituição a encerrar antes do tempo previsto. O grupo entendeu que algumas obras expostas estariam desrespeitando símbolos, crenças e pessoas. A visitação transcorria normalmente, desde o dia da abertura (14/08), até semana passada, quando integrantes do grupo passaram a invadir o espaço, hostilizando os visitantes e provocando situações constrangedoras para os mediadores, o curador e para a instituição. Estavam expostas obras de 85 artistas, entre nomes como Lygia Clark, Leonilson Jr., Flávio de Carvalho, Volpi, Portinari e outros artistas menos ‘famosos’, marginalizados pelo mainstream.

O banco, ao acatar a pressão deste grupo, fechou à visitação, à discussão, à possibilidade de transformar tais dissonâncias em ações como debates públicos sobre o respeito às diferenças, por exemplo. Ao se dobrar à pressão, o banco abriu precedentes para a censura, para ataques à arte e à cultura sempre que o que estiver representado não estiver de acordo com o ponto de vista de determinados grupos repressores, contrários à liberdade de expressão. Por trazer ao debate questões sobre gênero, sexualidade, identidade a mostra acabou sendo alvo de ataques de baixo nível nas redes sociais, provocados por pessoas que posam de defensoras da moral.

Dizem que  numa exposição de Matisse (artista francês, precursor do expressionismo abstrato e modernismo, que viveu entre1869 e 1954), ao ouvir de uma senhora sobre um quadro seu:
– Nunca vi uma mulher de barriga verde…
ele retrucou:
– Minha senhora, isso não é uma mulher; é uma pintura.

Quando toma por real aquilo que é simbólico, quando acusa as obras expostas de estarem promovendo a pedofilia e atacando o catolicismo, esta força extremista faz com que vença, em pleno século XXI, a ignorância e a falta de discernimento entre o que é crença e o que é arte.

Provocar, cutucar, lançar questionamentos sempre foi um dos papéis da arte, que está recheada de exemplos: o “David”, de Michelangelo foi apedrejado em praça pública, Tiziano, Goya, Courbet, foram rechaçados por suas obras serem consideradas atentado ao pudor. Há cerca de oitenta anos os nazistas destruíram obras de artistas como Käthe Kollwitz e Ernst Barlach, por considerarem ‘arte degenerada’, atentado à moral e pornografia. Vassily Kandinsky, Marc Chagall e Pablo Picasso foram proibidos (depois vendidos no mercado negro para financiar o próprio regime nazista).

Em agosto do ano passado, fiz a curadoria de uma exposição de desenhos de cinco artistas de Brusque (Alisson Grilo, Bianca Geanesini, Deivid Hodecker, Douglas Leoni eTarcísio Ullrisch), onde a proposta foi trabalhar a linha do desenho tendo como ponto de partida o corpo. “In(corpo)rar”, foi o título escolhido pelos artistas, para a exposição que abriu no dia 15/08/16, na Fundação Cultural.  Nos dois dias seguintes à abertura foi alvo de manifestações agressivas por parte de um grupo reacionário e extremamente conservador da cidade.  Tal grupo, desejoso por força política (foi ano de eleição para a prefeitura), não medindo esforços, utilizou-se de argumentos de baixo nível para atacar os artistas, acusando a mostra de pornográfica e pecaminosa, contra os ‘valores morais vigentes’. Quando o grupo relaciona o espaço de cultura e os próprios artistas a um segmento político partidário para justificar toda a ignorância e falta de argumentação, é que se percebe o raso deste tipo de mentalidade e o risco que corremos ao permitir que o conservadorismo se sobreponha à liberdade de expressão.

Assusta perceber que viemos, como humanidade, andando tão devagar nessa evolução do convívio com o outro, o diverso, o diferente, para chegarmos aqui e retrocedermos milhas de léguas numa velocidade estonteante. Assusta é o crescimento vertiginoso desta força obscura que puxa para trás, para o tempo em que não havia outra maneira de resolver as diferenças, senão eliminando-as.

A Arte existe para abrir a ferida e tocar o mais humano de nós, lá, onde todos somos absolutamente iguais. Não é religião. Não é partido político. Toleramos cenas explícitas de sexo em horário nobre na TV, crianças erotizadas pela publicidade, pelo carnaval. Toleramos, aplaudimos e uma indústria ‘cultural’ se abastece disso, mas desviamos das perguntas quando elas nos incomodam.  Estamos em 2017 e a arte continuará incomodando, sim!


Márcia Cardeal
– artista visual e ilustradora