Vidas reescritas: conheça famílias de Brusque e região que encontraram amor na adoção
Processo que transforma a vida de crianças e adolescentes na região começa com um cadastro
Processo que transforma a vida de crianças e adolescentes na região começa com um cadastro
No dia 28 de abril de 2001, uma ligação mudou a vida de Regina Kohler, de Guabiruba. Uma representante do Conselho Tutelar de Rio Negro (PR) informou que havia uma bebê disponível para adoção.
Para Regina e o marido, Dionísio, era o fim de uma longa espera. Após várias tentativas frustradas de engravidar e o diagnóstico de baixa chance de gestação, o casal decidiu abrir o coração para a adoção.
A menina, hoje uma mulher chamada Gabrieli, de 24 anos, já havia sido rejeitada por três famílias antes de chegar aos Kohler.
“Parecia que ela já nos esperava. Foi uma emoção impossível de descrever. Perguntamos quando ela fazia aniversário e disseram que era no dia 11 de outubro. Meu coração quase parou. É quase o mesmo dia de Nossa Senhora Aparecida, a quem eu vinha pedindo um filho há muito tempo”, conta Regina, emocionada.
Histórias como a de Gabrieli ainda se repetem. Crianças pardas ou pretas, assim como aquelas com deficiência ou doenças infectocontagiosas, estão entre as menos procuradas e aceitas pelos pretendentes.
Vitor Hugo, 8 anos, autista, faz parte do grupo de adotados com deficiência. Ele transformou a vida de Daniel e Graciano, casal homoafetivo de Brusque, que o adotou em 2022. “O diagnóstico dizia autismo e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). O coração dizia apenas: era ele“, recorda Daniel.
Os números do universo da adoção no país podem assustar em um primeiro momento. Atualmente, são 5,8 mil crianças e adolescentes esperando por uma nova família, enquanto existem mais de 32,4 mil pretendentes ativos.
Em Santa Catarina, 265 crianças e adolescentes aguardam adoção, enquanto há mais de 2,6 mil pretendentes, uma média de quase dez interessados por perfil. O problema, segundo os próprios dados, está nas rejeições e exigências, que dificultam o equilíbrio entre oferta e procura.
Apesar disso, Brusque possui números um pouco diferentes. Nos últimos anos, a maior parte das crianças aptas adotadas no município era considerada parda, resultado que a Vara da Família da cidade considera positivo.
De acordo com a última atualização do painel do SNA, Brusque conta com 106 pretendentes ativos e habilitados para adoção, a maioria casais (83%), pessoas brancas (49%) e com ensino superior completo (37%).
Dados sobre orientação sexual e renda familiar não estão totalmente atualizados, mas informações de janeiro indicam que a maior parte era heterossexual e com renda mensal entre três e cinco salários mínimos.
O interesse se divide quase igualmente entre adotar uma ou duas crianças (49% cada). Na saúde, 87% aceitam apenas crianças sem doenças infectocontagiosas e 89% sem deficiências, enquanto 58% se mostram dispostos a acolher crianças com outras condições médicas.
A faixa etária preferida é de 2 a 6 anos, e 78% dos pretendentes dizem preferir meninos. Crianças brancas e pardas são as mais desejadas; pretas e indígenas, menos.
Entre 2020 e setembro deste ano, 28 crianças e adolescentes foram adotados em Brusque, média superior a duas por semestre, seguindo o padrão estadual: meninos pardos ou brancos, com até 3 anos, são os mais escolhidos.
Atualmente, a cidade não possui nenhuma criança ou adolescente disponível para adoção (até 2 de outubro). Em Santa Catarina, das 265, sendo 52% meninas e 63% adolescentes acima de 12 anos. A maior parte é branca (59%) e sem irmãos; 21% apresentam algum problema de saúde e 18% têm algum tipo de deficiência.
O caminho para adotarO processo de adoção em Brusque, assim como em todo o país, segue um fluxo definido por lei. O juiz titular da Vara da Família, Órfãos, Sucessões e Infância e Juventude da comarca, Maycon Rangel Favareto, explica que tudo começa pelo cadastro obrigatório.
“Não existe mais aquela ‘adoção brasileira’, feita por afetividade ou até por compra (que é crime). Hoje, o processo é formal e controlado”, afirma o juiz.
Para se habilitar, o pretendente deve reunir documentos como comprovante de residência, renda, estado civil, tempo de moradia na comarca, certidões negativas e atestados de capacidade física e psicológica. Em seguida, participa de uma etapa de qualificação que inclui palestras e um curso presencial de adoção.
“Esse trabalho é feito pela equipe do Fórum. Depois, os pretendentes passam por avaliação psicológica e estudo social, realizados por psicólogos e assistentes sociais”, detalha.
O resultado gera um relatório com parecer favorável ou não, que pode inclusive impor restrições conforme o perfil escolhido. Já nessa fase, os futuros pais podem indicar preferências de idade, sexo ou cor da criança, e podem alterar esses critérios ao longo do processo.
“Durante o curso, muitas vezes a cabeça das pessoas se abre para aceitar e restringir menos, que é o objetivo. Mas sempre se respeita a voluntariedade. Nunca é imposto nada”, ressalta o juiz. Depois disso, o processo passa pelo Ministério Público e, por fim, ao próprio juiz, que decide pela inclusão no cadastro.
O tempo de habilitação varia. Segundo o SNA, em Santa Catarina o processo completo dura em média 10 meses. De acordo com o magistrado, a duração, principalmente dos casos de Brusque, depende da rotina dos pretendentes e da agenda das avaliações, podendo levar de alguns meses até um ano.
Um dos maiores desafios, segundo ele, é a compreensão sobre o histórico das crianças. “Muitas delas passaram por situações de violência, abandono, ou foram expostas a drogas e álcool durante a gestação. Isso pode gerar traumas, deficiências ou comorbidades que só aparecem depois”, afirma.
As crianças chegam ao sistema por dois caminhos: quando a gestante manifesta o desejo de entregar o bebê para adoção, decisão confirmada perante o juiz, promotor e defensor público, ou quando já estão em situação de violência e são encaminhadas pelo Conselho Tutelar, escolas, serviços sociais, polícia ou outras entidades.
Quando há aproximação entre família e criança, o processo varia conforme a idade. Em casos de recém-nascidos, o bebê é entregue diretamente ao casal. Já com crianças maiores, a adaptação é gradual, podendo incluir encontros presenciais, chamadas de vídeo ou fotos apresentadas pela equipe técnica.
“Se houver aceitação, inicia-se o estágio de convivência, que dura até 90 dias, prorrogáveis em situações específicas, como no caso de adolescentes”, explica.
Adolescentes precisam obrigatoriamente concordar com a adoção. Com os menores, a escuta depende da idade e da avaliação psicológica. Por fim, quando a adoção não acontece e a criança atinge a maioridade, entra em ação o Programa Melhores Caminhos, que prepara o jovem para o mercado de trabalho.
“Ele pode estagiar, receber salário e ter parte do valor guardado para quando sair do acolhimento. O município também oferece apoio, como aluguel social ou benefícios assistenciais, para que consiga iniciar a vida adulta de forma mais estruturada”, completa o juiz.
Mesmo com diagnóstico de autismo e TDAH, Vitor Hugo carrega uma alegria que transborda em cada gesto. Adora brincar na cozinha, rir com Bob Esponja e, sempre que pode, pede aos pais para andar de bicicleta ou jogar futebol ao ar livre.
Mesmo conhecendo os desafios, Daniel e Graciano decidiram se envolver. “Se tivéssemos um filho biológico, não poderíamos escolher como ele seria. Por que seria diferente na adoção?”, lembra Graciano.

Nas primeiras visitas, o vínculo foi imediato. Vitor logo passou a chamar os dois de ‘papais‘, e a juíza acelerou o processo de guarda. “Toda vez que colocava a cabeça no travesseiro, eu pensava: “o que foi que eu fiz? Mas era amor, e o amor só cresceu”, conta Daniel.
Houve preconceitos, não pela condição homoafetiva, mas pelo mito da ‘verdade do sangue‘. “Ouvimos frases como ‘não é filho de verdade‘, mas nunca nos abalamos. O importante é respeitar a história dele”.
Hoje, todos se rendem ao carisma de Vitor, que já representou Brusque na feira regional de matemática na categoria PCD e segue conquistando espaços. “Ele está vivendo como deve ser. Damos muito amor ao Vitor e já pensamos em adotar outra criança no futuro”.

Histórias como a de Vitor também se repetem na vida de Yara Laís Teixeira e Laís Tomio, que decidiram adotar sem restringir perfis de idade, saúde ou deficiência. “Não limitamos nada. A maioria escolhe bebês saudáveis. Nós aceitamos todos. Foram eles que Deus nos enviou”, conta Yara.
O resultado foi uma família que cresceu rápido: Caleb, 5 anos, autista nível 3 e apaixonado por água; Caio, 2, criativo e cheio de imaginação; Joana, também autista, carinhosa e apegada; e Bruno, de 1 ano, com paralisia cerebral, mas sempre em busca de movimento. Os dois últimos ainda estão no processo de conclusão da adoção.
Para as mães, os desafios não estão nas condições das crianças, mas na rotina cheia de consultas e terapias. “É igual criar crianças típicas. O que muda é a agenda. Amor, escola, alimentação, tudo é igual”, explica Yara.
O preconceito, porém, também esteve presente. “Disseram que éramos loucas, incapazes. Decidimos ignorar qualquer comentário negativo”, lembra Laís.
Hoje, entre consultas e brincadeiras, a casa é guiada pelo afeto. “O ideal seria que não houvesse crianças para adoção. Mas, já que existe, nosso papel é estar preparadas para recebê-las com seus medos e traumas. No fim, tudo o que precisam é de amor“, conclui Laís.

Ambas as famílias realizaram adoções por meio da ferramenta Busca Ativa. Ela é usada para ampliar as chances de adoção de crianças e adolescentes em acolhimento que não se encaixam nos perfis mais procurados, como grupos de irmãos, crianças mais velhas ou com necessidades específicas de saúde.
A Busca Ativa só é acionada quando se esgotam as possibilidades de encaminhamento em níveis municipal, estadual, nacional e internacional.
O brusquense Matheus Luiz Paulo, de 21 anos, foi adotado com apenas duas semanas de vida. Seus primeiros dias já foram de luta: a mãe biológica, grávida quase no último mês, foi encontrada debaixo de uma ponte em Brusque. Pouco depois do nascimento, entregou o bebê àquela que se tornaria sua mãe definitiva.
O processo não foi simples. Houve idas a orfanatos, disputas e até resistência dentro da própria família. Ainda assim, prevaleceu o desejo antigo de Maura e Debrando Paulo, hoje com 74 e 76 anos: adotar.
“Fui tirado da minha mãe duas vezes. Nos primeiros 50 dias fui parar no orfanato em Tijucas, mas minha tia me encontrou e me devolveu. Depois houve outra tentativa policial, até com armas, porque havia pessoas querendo me adotar. Mas minha mãe biológica já tinha autorizado a adoção, faltava apenas o trâmite jurídico. No fim, um advogado resolveu tudo e deu certo”, lembra Matheus.
Apesar da rápida conclusão, o casal admite que no início havia insegurança. “Tínhamos medo de não dar certo, de a criança não se adaptar. Essa insegurança é normal. Muitos diziam que éramos velhos demais, mas nosso amor pelo Matheus é imensurável. Ele é o filho que escolhemos a dedo“, diz Debrando.

Matheus cresceu cercado de afeto. Descobriu aos oito anos que era adotado, sem grandes traumas, apenas com a estranheza de não ser ‘de sangue’. Na adolescência, atravessou uma fase difícil e buscou apoio psicológico.
Entre as lembranças, guarda com carinho os momentos simples no sítio com os pais. “O que eu mais gosto de fazer com o pai e a mãe é conversar. O pai tem muita história para contar, a mãe é igual. É aquele papo de família“.
Hoje, planeja cursar Psicologia, área que, segundo ele, o ajudou a compreender melhor suas próprias questões.
Sobre os pais biológicos, afirma não ter interesse em reencontrá-los, a não ser para descobrir se tem irmãos. “Eu sou feliz, tenho pais maravilhosos e acredito que toda criança na fila de espera merece a mesma oportunidade que eu tive“.

O caso de Gabrieli Giani Kohler é outro parecido com muitos no Brasil. Ela, que se identifica como uma pessoa parda, foi rejeitada três vezes até ser adotada por um casal branco de Guabiruba quando tinha seis meses. Hoje, vive na Alemanha.
Ela conta que a adoção nunca foi segredo em sua vida. Desde pequena, os pais compartilharam sua história de forma natural, o que a fez crescer sem traumas ou surpresas. “Nunca esconderam isso de mim e isso foi bom”.
Essa transparência, afirma, moldou sua forma de ver a vida. Para Gabrieli, a adoção ensinou que família vai muito além dos laços de sangue. “Isso me deu força e maturidade, porque desde pequena eu sabia que a minha história tinha um diferencial”.

Dentro de casa nunca houve barreiras, mas no convívio social nem sempre foi fácil lidar com curiosidade e comentários invasivos e até racistas.
“Diziam que eu não tomava banho porque era ‘escura‘, que meu cabelo parecia uma vassoura entre outros insultos. Eu não dava bola e fui perceber que eram frases problemáticas há pouco tempo atrás”, afirma a jovem.
“Alguns questionaram pela cor dela, nos perguntavam ‘como era criar filhos dos outros‘. Nós respondemos de forma bem clara: ela é nossa filha e pronto“, complementa a mãe.
Quanto à família biológica, Gabrieli admite que já refletiu sobre conhecê-la, mas sem urgência. “Fui criada com tanto carinho e presença que não senti falta disso”.
Para ela, a adoção representa um novo começo. “É nascer duas vezes: biologicamente e depois quando fui colocada nos braços dos meus pais”.

Dionisio, hoje com 60 anos, e Regina, 54, lembram que, na época, o processo burocrático era mais trabalhoso: foi preciso enviar documentos autenticados a diferentes fóruns até que o tão esperado telefonema chegasse. “Mesmo com a ansiedade, a adaptação ocorreu de forma tranquila”.
Com a experiência de mais de duas décadas, eles incentivam outros casais a seguirem esse caminho. “É um ato de amor profundo, capaz de transformar não só a vida da criança, mas também a dos pais”.
Formada em jornalismo, Gabrieli escolheu contar a própria história em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Apresentado em formato de documentário dividido em quatro episódios, o projeto, intitulado “A cor do coração” também narra as trajetórias de outras famílias transformadas pela adoção.
Assista ao episódio da família Kohler:
A brusquense Ana Paula Garcia Scheffer Woiciechoski começou sua jornada no universo da adoção em 2016, ao adotar o primeiro de três filhos, somando-se aos três biológicos.
Ao lado do marido, passou a participar do Grupo de Estudos e Apoio à Adoção de Brusque (Geaab), onde Ana assumiu a presidência por sete anos. “O grupo nos permitiu conhecer de perto a realidade das instituições de acolhimento e os desafios enfrentados pelas crianças e adolescentes”, diz.
Há cerca de um ano, Ana fundou a Associação Somos Todos Adotados (Asta), com o objetivo de implantar a Casa Lar em Brusque. Além disso, o projeto também prevê uma república para jovens de 18 a 21 anos que deixam as instituições.
“A proposta prevê acompanhamento técnico e uma figura de referência residente. O objetivo é promover autonomia com suporte afetivo e social, minimizando riscos de abandono e exclusão. Cada jovem terá triagem e plano pedagógico individualizado para a transição à vida adulta”, explica.
A associação difunde ainda conhecimento sobre adoção, família acolhedora e apadrinhamento afetivo por meio de podcasts, mentorias e ações educativas para adolescentes de 12 a 18 anos.
“O padrinho ou madrinha torna-se uma referência afetiva estável, acompanhando o jovem em momentos de lazer e convivência. Diferente da adoção, não transfere a guarda, mas amplia vínculos de pertencimento”, afirma Ana.

Em novembro de 2024, a Prefeitura de Brusque inaugurou a Casa Lar, serviço de acolhimento para crianças e adolescentes em situação de violação de direitos. O espaço comporta até dez acolhidos de 0 a 18 anos, número reduzido em casos de deficiência. Atualmente, cinco crianças vivem na unidade.
Segundo a coordenadora Leila Cipriani, a proposta é oferecer atendimento individualizado, preservando a identidade de cada criança e criando um ambiente semelhante a uma casa. A equipe inclui cuidadores, psicóloga, assistente social e motorista, com previsão de contratação de merendeira.
O ingresso ocorre mediante medida protetiva emitida pelo Judiciário, após solicitação do Conselho Tutelar. “A prioridade é que a criança fique com a família. O afastamento também prejudica a criança, não só os pais”, afirma Leila.
O processo judicial tem limite de dois anos, período em que os acolhidos seguem na escola, participam da comunidade e, quando permitido, mantêm contato com familiares. Sempre que possível, busca-se parentes próximos e incentiva-se a Família Acolhedora; se o retorno não for viável, a criança pode ser encaminhada à adoção.
Leila destaca a carga emocional do trabalho. “Eles sabem o que estão vivendo e têm direito de compreender a situação. Muitas vezes chegam com maturidade precoce, fruto de experiências dolorosas. Não somos robôs. Nos emocionamos, nos envolvemos. O tempero da Casa Lar é justamente esse: misturar humanidade ao processo burocrático”.

Onde o Centro começou: relembre as transformações da praça Barão de Schneeburg, em Brusque: