A interpretação da Constituição
Agora que Lula já está preso, e a sociedade brasileira respira aliviada (ao menos por enquanto), cumpre digerir, aos poucos, tudo o que aconteceu na semana passada. O ponto mais importante, a meu ver, e que ainda pode repercutir, mudando o jogo, é a questão da prisão após condenação em segunda instância. A celeuma gira […]
Agora que Lula já está preso, e a sociedade brasileira respira aliviada (ao menos por enquanto), cumpre digerir, aos poucos, tudo o que aconteceu na semana passada. O ponto mais importante, a meu ver, e que ainda pode repercutir, mudando o jogo, é a questão da prisão após condenação em segunda instância. A celeuma gira em torno da interpretação do at. 5º, inciso LVII, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Para a turma liderada por Gilmar Mendes, que tentou dar o golpe e livrar a cara do Lula, isso significa que nenhum réu pode ser preso até que todos os intermináveis recursos aos tribunais superiores se esgotem. Isso torna inócua qualquer sentença condenatória para criminosos endinheirados, que tenham recursos para pagar advogados que sabem manejar tais instrumentos de protelação da justiça. Se a tal regra for considerada válida assim, no mero casuísmo de salvar a pele de Lula, todos os presos da Lava Jato deverão ser soltos, e, igualmente, qualquer criminoso que tenha dinheiro para pagar os caríssimos recursos, embargos e protelações mil que a lei permite.
Para quem não tem dinheiro, o prazo para recurso passará e a sentença “transitará em julgado”, não restando outro remédio se não o cumprimento da pena. O ministro Marco Aurélio Melo está insistindo nessa tese, e é assustador para o cidadão de bem que a mais alta corte do país interprete o texto constitucional citado como se o constituinte estivesse pregando a impunidade, e não tentando proteger possíveis vítimas de atos arbitrários.
Mas o que significa interpretar uma lei? Significa identificar sua intenção, sua inteligência, que consequências o legislador imaginou que ela deveria ter. isso é o que se chama, em latim, de “mens legis”, o espírito da lei, a inteligência da lei, que nem sempre é explícito, em todas as suas consequências, nas letras jogadas no papel. Cabe ao STF dar a palavra final na interpretação da Constituição. Sua responsabilidade é imensa. Imaginem que, se a manobra a favor de Lula for vitoriosa (batam na madeira, por favor!), não só ele, mas o crápula do Sérgio Cabral, o Palocci, o Zé Dirceu, o Cunha e toda a patota poderá pedir o mesmo tratamento. Em tese, qualquer assassino ou estuprador que ainda tenha recursos pendentes, poderá requerer o mesmo direito, afinal, enquanto pender algum recurso, a sentença não terá transitado em julgado, e o camarada é considerado inocente.
Ora, a quem, além dos criminosos ricos e dos advogados criminalistas, que veem aí uma chance de ganhar rios de dinheiro, interessa uma interpretação desse naipe? Será que o constituinte de 1988 queria isso? Ora, vejamos o que diz o constitucionalista Gilmar Mendes, o mesmo boquirroto que defendeu os “presos pobres” no seu discurso da última quarta-feira: “Esgotadas as instâncias ordinárias [2ª instância] com a condenação à pena privativa de liberdade, tem-se uma declaração, com considerável força de que o réu é culpado e a sua prisão necessária.” O texto é tirado do livro “Curso de Direito Constitucional”, da Editora Saraiva. De onde vem, então, essa mudança esdrúxula de opinião, que pode trazer tanto prejuízo à justiça, jogando no lixo o trabalho de policiais, delegados, promotores e juízes? Esse país já é atrativo demais para criminosos. Não precisamos oferecer massagem e champagne.