Segundos antes de digitar a primeira palavra deste texto, que eu já havia ensaiado desde meu mais recente momento reflexão com os questionamentos de meu filho, a luz da tela do computador reagiu contra minhas mãos. Apresentou-as diferentes.

Eu vi mais. O calo de um dos meus dedos da mão direita, vítima de lápis e canetas, giz também, pareceu-me mais cansado. A pele que cobre as falanges, não as “juntinhas” dos dedos, entre elas, eu vi… havia mais. Minhas mãos estão marcadas. É possível percorrer o caminho das linhas com facilidade, são infinitos e minúsculos jogos da velha, um grudado no outro.

 

Então resolvi acender outra luz do quarto. Minha pele, dos braços, dos pés, pescoço, fui beliscando e sentindo que está sutilmente acessível às pinçadas, retorna ao lugar sem muita pressa. Pouca coisa, mas alguma coisa. Lembrei de uma ruga entre minhas sobrancelhas que me incomoda nas fotos. Quando ela aparece demais, não me reconheço e aí quero me livrar dela. O que há de estranho, se todos os dias olho para minhas mãos e me encontro com espelhos? O que houve hoje?

– É pra desenhar os membros da sua família, filho. Leia ali de novo. Ó, diz também que você deve escrever a função. Tipo o que fazem, em relação a ti, eu acho.

– Tá. Vou desenhar a Oma também, né?

– Ah, claro! Ela cuida muito de ti, né? Ela vai adorar.

– Mãe?

– Oi.

– Não consigo desenhar a Oma e o Opa. Tem que fazer umas coisas na pele. E nem dá pra botar bengala porque eles nem usam. A Oma usa óculos rosa ou vermelho? Ela tá igual a tu aqui, mãe. Não sei fazer aqueles negocinhos na pele…

Sobras nas pálpebras, falhas nos lábios, sulcos procriam, garatujas melhoram suas performances por todo corpo, aprimoram com o tempo e reinam na velhice. Nossa pele é honesta, mesmo quando tacamos ácidos, paralisantes ou pó de arroz – é de arroz? – mesmo assim ela se rende ao futuro que estampa passado. Sabe-se que ossos, dentes, cabelos ou outros órgãos também, mas a pele é o pelotão de frente. Não critico métodos que delineiam com mais carinho o processo de murcharmo-nos. Meu propósito é encontrar a beleza naquilo que definha naturalmente, apesar dos métodos.

pele

Me aproximei dos bonequinhos desengonçados de meu filho e não sabia nem por onde começar a ajudá-lo. Jamais havia prestado atenção nas rugas de meus pais, não havia me apaixonado por elas e as decorado para desenhá-las. Devo as ter negado, como evito os primeiros indícios das minhas. Um conflito entre desejar viver muito e não aceitar as condições. Conta difícil de fechar, uma vez que ficar velho significa desviar do desaparecer-se, por sorte ou competência, e desfrutar de mais tempo de vida, ao passo que frustramo-nos com a oxidação do corpo, esquivamo-nos de rugas e cabelos brancos porque não os valorizamos o suficiente para querê-los.

Envelhecer é privilégio, enrugar-se é fartura de memórias, ficar mais lento e cansado é exercitar a humildade em constatar que não somos eternos. Nosso objetivo deveria ser fazer-se idoso, velho, ancião, cheio de vida. Sei que vidas medíocres podem ser longas e muitas vidas curtas revelam-se extraordinárias, no entanto raros de nós não concordam que mais um dia nos dá tanta esperança, nos lançam de mais tempo na terra.

Amanhã verei minha mãe. Pretendo sentar-me a sua frente e verificar sua pele, procurar as marcas mais audaciosas, massagear seus cabelos, conscientizar-me do atrito entre nossas peles, encontrar os momentos escritos nela e finalmente ver o óbvio. Quero ficar tão linda quanto ela. Quero despoluir-me de belezas reservadas somente à juventude. Quero muito envelhecer.

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Karline Beber Branco – professora e mãe