Uma das questões mais importantes da filosofia jurídica é o limite do poder do juiz, até onde pode ir sua discricionariedade. Essa palavra estranha significa o grau de liberdade que uma autoridade tem para decidir conforme seu próprio critério, sem ser constrangida ou limitada por uma lei. É consenso que, num Estado Democrático de Direito, o poder discricionário dos juízes deve ser limitado, sob pena de se perder um bem valioso: a segurança jurídica. No nosso sistema jurídico, cabe ao poder legislativo estabelecer as leis e ao judiciário resolver os casos concretos, com base nessa lei. Como as leis nem sempre são claras e alguns casos são bastante difíceis, ao juiz é dado certo grau de liberdade para interpretar com base nos princípios gerais do Direito. Quando o juiz extrapola esses limites, a segurança jurídica é ameaçada e, com ela, o Estado de Direito. O filósofo norte-americano Ronald Dworkin insiste que a interpretação dos princípios não deve ir contra os valores partilhados por uma sociedade, e o jurista gaúcho Lenio Streck critica intensamente os excessos nas decisões judiciais. Ele chama de “pan-principiologismo” essa mania que alguns juízes têm de ignorar as leis e decidir qualquer coisa, sacando da cartola qualquer princípio aleatório.
Com base nisso, analisemos novamente a decisão dos ministros do STF Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber, que decidiram que o aborto, praticado até o terceiro mês de gravidez, não é crime. Tal decisão atropelou e aleijou permanentemente o Direito vigente no país, cuja Constituição Federal garante o Direito à vida como cláusula pétrea, que não pode ser mudada nem mesmo por emenda constitucional. Ademais, o Código Civil é claríssimo ao estender esse Direito ao nascituro, desde a sua concepção. Esse estupro ao Estado de Direito se baseou num princípio, o da liberdade da mulher sobre o seu corpo, defendido por meia dúzia de feministas barulhentas e midiáticas que, nem de longe, representam as mulheres brasileiras que, em sua maioria, consideram essas ideias ridículas e ofensivas.
O argumento da liberdade feminina é tão inconsistente que sequer poder ser discutido com alguma inteligência, afinal só se pode discutir um argumento quando todos os elementos do problema são colocados na mesa e igualmente sopesados. Mas a ideia é tão martelada na mídia (aliás, os cursos de jornalismo são o principal veículo de formação dessa mentalidade “avançada”) que chega a parecer majoritária.
Ora, as feministas e os revolucionários da cultura têm todo direito de pensar e defender o que quiserem. Mas para que isso se torne lei, precisam eleger trezentas “Maria do Rosário” e mais cento e cinquenta “Jean Willis”, convocarem uma nova constituinte e, numa constituição nova, aprovarem o que quiserem. Mas com apenas três votos, dos ministros escolhidos a dedo por Lula e Dilma, já conseguiram seu intento. Como isso é possível? Se isso não é um golpe, então o que pode ter esse nome? A rasteira dada no Estado de Direito, no caso do aborto, e tão grave que, se o modelo for seguido, direitos trabalhistas, como o décimo terceiro, podem ser suprimidos por qualquer argumento, ou a pena de morte, igualmente vedada por cláusula pétrea, pode voltar. Basta alegar qualquer “princípio”.
Mas o pior é o silêncio da grande mídia, depois de tão grave violação. É como se nada tivesse acontecido. A OAB nacional, tão preocupada com as violações de questiúnculas processuais para os réus da Lava Jato, sequer emitiu uma nota de repúdio, afinal bebês recém-concebidos não podem contratar e pagar bons advogados. Até onde isso tudo nos levará?