Desde que me lembro, guardo coisas. Coisas de dentro, coisas de fora. O mesmo ímpeto que me leva a guardar lembranças emocionais, como cartões de tempos atrás, frases de impacto e imagens que vibram, guardo também, com o mesmo tipo de obsessão cores, pedaços de tecidos, papéis diferentes: de embrulho, de bala, de rascunho. Pedaços amassados, alquebrados, indiferentes, como partes de um todo que desconheço, ou por vezes reconheço. Ou penso reconhecer conformada as ordenações.

As coisas de dentro se manifestam em reações a poéticas, verbais ou visuais, de outros, com quem acabo fazendo relações, as mais estapafúrdias, mas que me servem como antídoto para vazios insuportáveis. Acabam virando uma coleção desordenada, sem um foco específico. Vou amontoando em lugares também irreverentes, que na maioria das vezes nem lembro onde, pois esqueço qual o impulso que me fez optar por aquela ordem, por aquele local específico para guardá-las.

Passei a selecionar objetos com os quais tinha uma relação mais intensa, mas que por vários motivos não se encaixavam no modo como estavam classificados no mundo, pois para mim se apresentavam como elementos múltiplos e plurais e não podiam conformar-se a algo pleno ou totalizante, já que se mostravam incompletos e distantes da importância que eles adquiriram a partir da minha vivência com eles. Necessitava de outra taxonomia para nomear a pluralidade incontrolável da realidade vivida. Objetos desnecessários, que se desdobram em milhares de vozes a ditar suas peculiaridades, mesmo que aparentemente se mostrem fatídicos e imutáveis, classificados superficialmente sem levar em conta a fragilidade de sua condição.

A sopeira antiga de porcelana, presente de casamento de meus pais adquire outra conotação com o adesivo que coloco nela “A mulher que engoliu o prazer” e passa a deslocar-se pela casa assumindo minhas idiossincrasias. A moringa de ponta cabeça busca um avizinhamento entre formas, trazendo a abóbora como potencial para meu minúsculo jardim de sacada. E ali, fingindo ser o que aparentemente não é me atrai pensar no poeta brasileiro Bilac. A taça de cristal dourada, presente de meu único amor, me recorda uma tela vivida e que teve um fim inesperado. Insólita e solitária reina pela casa me lembrando que na tela do fim do mundo as coisas se liquidificam e se transmutam. A panela de ágata dos bisavós remete ao caldeirão da bruxa, onde desobedeço as regras e  intensifico-me na desordem da gula.

Os objetos desnecessários ganham uma necessidade desobrigada, leve, para além de sua utilidade convencional, e conseguem, mesmo que nem sempre, suavizar minha opressão. Elas, aparentemente imóveis, possuem uma prosopopeia própria e me enchem de alívio, me enchem de encantamento e me confirmam a poesia dos dias.


Silvia Teske
– artista