Essas coisas são complicadas. Sempre tive fé no ato de questionar. Acredito que sem questionamento a gente é presa fácil dos conceitos vindos de fora para dentro, sem filtros pessoais, sem realmente escolher o que a gente pensa ou deixa de pensar, aceita ou deixa de aceitar. Sempre preferi ser a chata que questiona a ser parte da claque, aplaudindo sorridente qualquer bobagem. Questão de não gostar de fazer parte de rebanhos.

Mas… as redes sociais andam transformando o questionamento em uma mutação predadora chamada problematização. Problematizar é questionar tudo, com bases exageradas, muitas vezes, mais pelo gosto de revirar um assunto do que pela necessidade de não aceitar pacotes prontos.

Pior, as pessoas começam a confundir as duas coisas e a xingar questionamentos válidos de problematização, como se qualquer dúvida fosse mera pentelhação. Um perigo.

E eis que isso tudo alcança a tal da nova música do Chico Buarque, Tua Cantiga, parceria com Cristóvão Bastos. Você parou para olhar a letra? Vale a pena – até porque a música é linda e vale ser ouvida com prazer, música e poesia. Lá vai o vídeo oficial com a letra.

E lá se foram algumas pessoas, problematizar. Como assim, a letra é machista! E ainda romantiza o adultério – ele vai largar mulher e filhos? – e a relação abusiva, recheada de obsessão e ciúmes excessivos. Um degrau abaixo, chegou-se a um “o Chico não me representa mais” e outras confusões entre pessoa e artista. Sem falar na falta de compreensão básica sobre a distância entre figuras de linguagem e realidade.

 

Ai, gente. Eu sei, nada disso é muita novidade. Na época em que a excepcional Mulheres de Atenas foi lançada – e isso há mais de 40 anos e em plena ditadura – houve quem não compreendesse a ironia e a famosa compreensão da alma feminina da letra, achando que o artista estava mesmo mandando as mulheres seguirem o exemplo das atenienses, que…

 

Despem-se pros maridos

Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho

Costumam buscar um carinho

De outras falenas

Mas no fim da noite, aos pedaços

Quase sempre voltam pros braços

De suas pequenas, Helenas

 

Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas:

Geram pros seus maridos

Os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade

Nem defeito, nem qualidade

Têm medo apenas

 

Se tivesse sido lançada hoje, pobre Chico, teria que exercitar seu humor ante críticas raivosas em doses cavalares. Claro, temos nessa problematização um fundo político bem atual, em que o artista tem sido identificado demais com o grande objeto de ódio nacional, o PT. E, aí, tudo vira material criticável, com o objetivo de reduzir a importância de Chico Buarque em nossa cultura nacional. Aquelas coisas que os historiadores vão passar trabalho para explicar, no futuro.

 

Para defender o irmão, ninguém melhor que Ana de Hollanda – embora ela mesma diga que ele não precisa de advogados. Um trecho do texto que ela publicou em sua página: “condenam o autor da frase, sem terem se dado conta de que os personagens das canções de Chico – aliás, de qualquer ficcionista – não costumam ser autobiográficos. Que o compositor descreve situações e sentimentos corriqueiros, e até comuns, concordando ou não com eles. E que a criação artística é livre, ao contrário de uma tese acadêmica. Mas, se for pelo caminho dos zeladores da nova moral, vamos nos preparar para a queima de livros clássicos dos séculos anteriores e para a censura aos maiores autores do cancioneiro popular do século XX. Na real, o que esse tipo de gente não admite é o sucesso de compositores que ocupam a mídia há mais de meio século. No caso específico, condena a obra e os autores, sem ter ideia de que o lundu feito por Cristóvão, estilo musical quase extinto, herança dos escravos, serviu de inspiração para Chico criar uma letra condizente, com imagens e expressões raras no linguajar atual.

Mas pelo visto, isso tudo é sutileza demais para tempos em que uma reflexão não pode ocupar mais do que 140 caracteres.”

 

Pois é.

 


Claudia Bia
– jornalista e fã desde criancinha