A vida poderia ser mais simples. Mas, como sabemos, nós complicamos tudo o que podemos. A noite da segunda-feira passada trouxe a notícia da morte de Rogéria, autoproclamada “travesti da família brasileira”.

Rogéria era uma figura única, mesmo. Conseguia, por conta da sua própria personalidade, reduzir o preconceito com que teria sido brindada pela nossa sociedade tão conservadora, ainda mais algumas décadas atrás. Mas ela conseguia uma aceitação especial, como se fosse aquela tia estranha que toda família tem… e que acaba esquecendo que ela é diferente.

Pelo menos era essa minha leitura. Muito elogio, muita gente dizendo o quanto ela sempre foi gentil, inclusiva, calorosa. Muita gente dizendo o quanto ela, do jeito dela, abriu caminhos que, de um jeito ou de outro, chegaram no ponto em que estamos hoje, com uma inegável amplitude de gêneros que seria impensável não muito tempo atrás. É, claro, um fenômeno mundial que tem cada vez mais reflexos aqui no nosso país bagunçado. Mas as coisas não costumam ser o que parecem.

Logo depois da morte de Rogéria, comecei a tropeçar em textos (e textões) sobre ela. Sobre como ela não era (mais) representativa para a cena atual. Como ela não era alguém que desse suporte ao universo trans. Era, inclusive, contra a cirurgia de adequação de sexo. Considerava uma mutilação e fazia questão de dizer que convivia muito bem com a sua “porção Astolfo”.

E lá vamos nós. Mesmo pisando os limites do que se chama hoje lugar de fala (ou seja, deixar que as pessoas envolvidas opinem, já que a gente, que está de fora, tem uma visão bem limitada das coisas), não dá para não ter alguma opinião sobre o assunto. Rogéria tinha 74 anos. Seria lindo que ela tivesse conseguido se manter alinhada com as novas formas de pensar… mas talvez fosse querer demais de alguém que já tinha sido parte de tantas lutas. Já não era o papel dela. Este é o trabalho das novas gerações.

Sincronicidade: Rogéria morreu exatamente no dia em que sua personagem, Ninette, fez sua primeira aparição na reprise da novela Tieta, no Viva. Isso é que é timing perfeito.