Na última coluna do ano, compartilho um texto de um dos meus autores favoritos, o moçambicano Mia Couto. Artista da palavra, a utiliza como instrumento para reencantar o mundo. Dentre inúmeros prêmios que já recebeu está o Neustadt, considerado o Nobel americano. De escritores de língua portuguesa que já receberam esta honraria está ele e João Cabral de Melo Neto. Além dos textos literários, Mia Couto já produziu belíssimas reflexões sobre nosso tempo e a humanidade, como o discurso na abertura do ano letivo do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique. Segue um trecho (com vocabulário e sotaque português!) como desejo de um novo ano de paz e riqueza verdadadeira:

“A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.

Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível”. O termo é curioso: “compatível”.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.

Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.

É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos.

A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.”


Lieza Neves
– atriz, escritora e produtora cultural

 

 

Foto: Greg Salibian (Flickr)