Ela pareceu-me aceitar, pois era o que lhe sobrava, aceitar. A narração foi causada, fui germinando perguntas, no início desinteressadas e para manter um primeiro encontro fluído, conversas sobre o calor que vem fazendo, como Brusque vem crescendo… Até que, notas pessoais foram soando e dispararam em mim curiosidade.

– São três filhos, é?

– Aham. São minha vida, tudo pra eles e mesmo assim não tá bom, sabe? Ontem minha menina brigou na escola, daí queriam tirar ela do projeto, nada a ver. Tive que ir lá e ouvir que não dou atenção pra eles o suficiente. É que meu mais novo dá muito trabalho na escola também. Nem sabe ler e escrever ainda. Ops, te machuquei aqui? É que tuas cutículas estão muito sensíveis.

Há tempos não ia ao salão, nem percebi que ela havia me machucado. Eu já me encontrava intrometida naquela pessoa, inteiramente alheia ao que ela fazia e imersa no que ela falava. Quis saber mais. Não à toa, afinidades despertam atenção. Ela tem filhos, estão em idade escolar, trabalha, é mulher. Eu queria saber mais e mais.

– Eles estudam de manhã?

– Minha menina fica à tarde num projeto também, mas o pequeno pago minha vizinha pra olhar, dou minha cesta básica pra ela junto.

– E o mais velho?

– Ele tá morando com meu pai. Corta meu coração, mas é melhor pra ele, já tá mocinho. Na cidade do meu pai ele pode ajudar e fazer o dinheirinho dele. Meu pai pesca, ele já aprendeu muita coisa. Eu trabalho até às 10, às vezes. Sou sozinha, sabe moça… Seu nome é mesmo?

– Karline. E o seu?

– Sonia.

– Deve dar saudade, né Sonia?

– Nem me fale. Faz 5 meses que não vejo meu moleque. Ele é caprichoso, faz até comida. Meu pai tá feliz com ele lá. Falo com ele quase todo dia. Ele quer um celular no Natal só pra ele, vou dar um jeito. Não é fácil sozinha, o pai deles tá sumido.

– Como assim?

Corri com os olhos na ação da lixa e por uma parede de esmaltes que morava ali, em poucos segundos lembrei onde estava, rapidamente me reconectei com ela. Havia um efeito que transitava pelas mãos dela conforme ela cuidava das minhas e narrava, expunha sua vida, com tranquilidade, mescla de cansaço e esperança. Falou do ex-marido sem raiva, sem forças, só lamento. Tinha de tocar para frente, não havia tempo e espaço para queixas, nem arrependimentos.

– Ninguém encontra. Ele não aceitou que eu queria ir embora. Moramos juntos uns 6 anos. Mas ele é complicado, muito mandão e só nos rolos. Era meio doido por mim, pelas crianças ele tava nem aí, tinha até ciúme dos filhos comigo. Coisa de homem maluco. Daí resolvi ir mudar de estado, ir para uma cidade maior, nem tinha muito trabalho pra mim ali no meu estado, mesmo. Não queria fazer o que meu pai faz. Eu gosto de dar beleza pras pessoas, sabe… É Karine?

– Karline. Pena ele não assumir a responsabilidade de pai. Tá muito errado isso. Tu és uma guerreira. Tens alguém mais na tua vida hoje? Dissestes que ele era pai dos dois primeiros.

– Você vai querer uma cor? Acho que pra hospital não pode, né? Tua barriga tá bonita. Nove meses já, é? Mas tá alta eu acho ainda, né?

Sei não se era desvio de conversa, ou se ela era tão confortável com sua própria história que caminhar pelo já ocorrido e frear com o cotidiano não a levava ao pesar, não demonstrava desalento nem aflição. Eu era uma estranha, talvez fosse o que a deixasse mais livre, embora para alguns seja o oposto. Na voz de Sonia não cabia vaidade sobre uma história triste, não emitiu uma palavra sequer com cor de desejar me impressionar por ter sobrevivido ao que ela me atacaria em seguida.

– Tenho um namorado agora. Não é paixão, sabe? Mas paixão ele tem pelos meus filhos. Então tá bom.

– Ele é o pai do mais novo, então?

– Não.

Seria um ataque, mal ela sabe que descarregaria em mim, por meio das próximas palavras, a violência que ela não pode se dar ao luxo de sentir e reagir. Me nocautearia com passividade, inércia que a protege do passado para ter forças e encarar o presente como presente, por mais caro que ele tenha sido.

– Karline. Nome diferente, gostei. Minha filha se chama Lara. Não posso ter mais, mas se eu tivesse mais uma menina, acho que ia querer esse seu nome aí. Não falo muito disso, mas tem gente que sabe ouvir sem pensar mal. Nem te conheço, mas acho que tu é assim. E como tu é professora, vou te falar uma coisa. É que o Carlos é muito rebelde na escola, mas comigo ele é cheio de dengo. Ele não para, e eles não entendem que é difícil porque a moça que eu pago pra olhar ele não sabe fazer as tarefas e eu tenho que trabalhar. Já expliquei pra eles na escola que na gravidez eu não aceitava. Ele é filho de um abuso, sabe? E…

A última frase explodiu num estrondo. Um grito do nada, o resto ficou pausado. Foi aí que ela me atacou. Eu queria interrompê-la, sacudi-la, arrancar dela quem, como, eu não aceito! Sonia continuara, focada no tipo de remédio para tratar o filho, que ações dentro das possibilidades dela seriam cabíveis para ajudá-lo. Justificando que o resultado dele ser assim era plausível e talvez esperasse ouvir de mim algo mais por ele. Ela estava invisível na sua história. Se anulou, cerceou a violação, renunciou o escarmento, a punição que o passado lhe devia, ela caminha reto.

– Não dá pra falar pra todo mundo. Não quero que “Calo” saiba. Eu consegui gostar dele, sabe? Não é a mesma coisa que os outros, não dá pra explicar. Minha menina também. Ela nem sonha. Mas lá na escola tive que falar do estupro, né? Pra ver se eles entendiam. Só descobri que tava grávida depois dos 3 meses, chorei a gravidez toda. Esse meu namorado esperou muito pra eu conseguir fazer, entende, né? Ele foi muito paciente comigo. Mas, meu menino é isso, sei lá se vai melhorar. Como você é professora, você acha que tem jeito?

Quis abraçá-la. Ela já havia dado jeito em tudo. Ela acorda, pega o ônibus, arruma os filhos pra escola, vai à caça de comida, não abre mão de falar com o mais velho todos os dias, quer fazer mais pelo mais novo que a devolve amor e lembranças, proíbe a filha de sair depois de escuro porque a ama demais pra isso e porque o escuro lhe traz lembranças, se permitiu conhecer mais um homem que a prove talvez não ter mais lembranças. Não lamenta, ela aceita, ela se anula. Talvez seja o único jeito, na invisibilidade da protagonista que ela deveria ser da própria vida, ela arruma a casa e sobrevive, pois se ela se olhar, ela terá de enfrentar algo grandioso. Eu não a julgo por negligenciar o passado. Eu não a julgo por não se vingar. Eu a admiro.

– Boa hora, Karline. É assim que se fala, né? Boa hora!

Eu a abracei.

 

Karline Beber Branco – professora e mãe de Isaac e Romeo

 

 

 

Arte: Silvia Teske