Sexta-feira, 4h da tarde, dia e hora onde me permito fazer um lanchinho mais gostoso e fora da dieta. Vou até a esquina, na padaria de nome francês e dos melhores croissants, escolho dois, um salgado que acabou de sair do forno e um doce para equilibrar. Saindo, pronta pra devorar minha aquisição, um homem me para, está mal vestido e provavelmente sem banho, me pede comida. Eu volto na padaria de nome francês e dos melhores croissants e compro um pra ele. Ele fica feliz e diz “que Deus lhe abençoe”.

Ele tinha fome. Fato. Mas o que veio na minha cabeça foi, será que o alimento apenas matou sua fome física, ou também espiritual? “Somos o que comemos”. Será que essa frase se aplica apenas ao campo nutricional ou também ao social?

Quando a alimentação passa a ser uma mera necessidade e deixa de ser um ato social e cultural, não estamos tirando um direito humano que deveria ser garantido a todo ser?

Semana passada ouviu-se muitas polêmicas sobre o programa lançado pelo atual prefeito de São Paulo, o Dória, denominado de “Farinata” e apelidado de “ração humana”. As discussões giram principalmente em torno do interesse financeiro das isenções fiscais que as grandes empresas irão ganhar, do jogo político por trás disso tudo, da pouca clareza em relação às informações nutricionais e principalmente do fato de estar-se suprindo a fome com um “farelo comestível”, mais ou menos como se trata galinhas em uma granja, submetendo a classe pobre à mera sobrevivência.

Paro aqui pra refletir este último ponto.

De acordo com manual do MEC para alimentação nas escolas, “a alimentação é um ato voluntário e consciente”.  Tal documento distingue o significado desta com o de nutrição, que “é um ato involuntário, uma etapa sobre a qual o indivíduo não tem controle”. A fome biológica também se difere do apetite e do desejo.

A fome biológica é um instinto de sobrevivência (subsistência) e baseia-se no manter-se vivo, de qualquer forma e a qualquer custo. O apetite é algo que traz prazer, algo cultural, adquirido, criado, que se materializa através do tempo e molda-se conforme a cultura alimentar na qual a pessoa está inserida.

Quando eu percorro os corredores de um mercado ou feira, apreciando as prateleiras, escolhendo os produtos enquanto imagino deliciosas receitas, muitas vezes bastante saudáveis, eu estou vivenciando sentimentos. Quando eu passo no caixa e pago pelos produtos meticulosamente selecionados para minha janta, eu estou reafirmando minha classe social.

Quando eu me permito fazer um “lanchinho mais gostoso” nas sextas-feiras a tarde, eu estou usufruindo de um privilégio de classe. Eu estou exercendo um direito meu de ter hábitos alimentares e escolhas conscientes. Eu também estou saboreando e sentindo prazer naquela degustação (alimentação).

O projeto da “ração humana” se legitima pela existência da fome, problema socioeconômico e de saúde pública gravíssimo.  Porém, em um país onde historicamente as medidas de curto prazo se instalam indeterminadamente, logo convertendo-se em soluções, me indago se tal projeto não terá impactos no sentido de corroborar com a  alienação de uma classe.  Afinal, vivemos em uma sociedade de classes desiguais, onde, em última instância, a riqueza que temos determina os limites prováveis nos quais se situam nossos hábitos alimentares e nossa nutrição.

É preciso ter em mente que aquilo que se come, quando se come, onde se come e como se come, são processos de reafirmação de classes sociais, que vão muito além do ingerir o necessário para sobreviver a mais um dia.


Michelle Kormann da Silva
– gastrônoma

 

 

 


Nicole Luiza Kormann da Silva
– estudante de Economia – UFSC