71 anos da morte de Ivo Renaux: conheça detalhes do mais famoso caso criminal de Brusque
O Município traz trechos da investigação, do julgamento e pós-sentença que inocentou Dagmar Renaux
O Município traz trechos da investigação, do julgamento e pós-sentença que inocentou Dagmar Renaux
Sábado. 9h30 da manhã de 30 de julho de 1949. Um forte estampido ecoa na Villa Ida, mansão localizada dentro do terreno da Fábrica de Tecidos Carlos Renaux.
O barulho assusta as empregadas da casa, que correm em direção ao segundo andar, de onde veio o forte som. No alto da escada, encontram a patroa, Dagmar Sylvia Renaux, bastante nervosa, que logo ordena que voltem para o térreo, sugerindo que o barulho foi resultado da queda de um quadro, como já acontecera anteriormente.
Os minutos passaram e a rotina na mansão seguiu normalmente. Por volta das 10h40, Amália Boos, uma das empregadas da casa, foi até o andar de cima e, pela porta entreaberta do quarto, viu o patrão, Ivo José Renaux, deitado na cama do casal com a aparência estranha. Ela chamou-o três vezes, sem resposta. Decidiu então entrar no quarto e se deparou com Ivo muito pálido, deitado de barriga para cima, com as mãos postas sobre o tórax e o abdômen e coberto até o pescoço.
Ao seguir na cena, ela percebeu que do lado direito do rosto de Ivo saía sangue e que ao lado da cama, no assoalho, estava um revólver.
Logo, o ocorrido na mansão se espalhou pela cidade. A casa recebeu inúmeras pessoas que foram socorrer Ivo, mas sem sucesso, pois o jovem industrial já estava sem vida.
As circunstâncias em que o herdeiro da família Renaux foi morto despertaram curiosidade e levantaram um grande mistério. A forma com que o corpo foi encontrado: de barriga pra cima, coberto até o pescoço e com as mãos cruzadas na altura do peito, logo descartou a hipótese do suicídio que inicialmente foi levantada, principalmente pela esposa Dagmar.
A jovem paranaense se tornou, então, a principal suspeita do crime. Os jornais de todo o estado já davam como certo o mariticídio.
No dia anterior a tragédia que despertou atenção de todo o estado, Ivo Renaux comemorou seu aniversário. O jeito boêmio do herdeiro era o principal motivo para as frequentes brigas do casal.
Naquele 29 de julho, Dagmar preparou uma festa na mansão para celebrar o aniversário do esposo. A comemoração seria em família: Ivo, Dagmar e as três filhas pequenas. O aniversariante, entretanto, não apareceu.
Dagmar, na companhia da sogra, foi em busca de Ivo. Elas o encontraram em um bar da cidade, porém, ele se recusou a voltar para casa. Ivo seguiu para Itajaí, virou a noite comemorando com os amigos e voltou para casa já próximo do amanhecer.
Em depoimento à polícia, as empregadas da família relataram que ao voltar para casa, após ir em busca do marido, Dagmar ordenou que a chave do quarto do casal fosse retirada da porta.
A mulher também não dormiu naquele cômodo, já que sabia que o esposo chegaria bêbado em casa e queria evitar confusão. Em depoimento à polícia, Dagmar contou que não dormiu direito naquela noite. Levantou-se por volta das 7 horas da manhã para ir ao banheiro e ordenar a ida das crianças para o jardim. Pouco depois, foi acordada pela empregada para tomar laranjada. Contou que também ouviu o barulho quando dormia ou cochilava.
O Município teve acesso a todo o processo da morte de Ivo Renaux, que faz parte do acervo do Museu Casa de Brusque.
No inquérito policial que trouxe Dagmar como a principal suspeita da morte de Ivo, ela foi descrita como uma pessoa que “não apreciava seu marido e nem lhe dedicava amor”. A polícia também concluiu que ela “não se dedicava aos afazeres de dona de casa, apreciava sobremaneira a leitura de romances policiais, cinemas e esportes”, além de ser uma mulher “de gênio autoritário e ousado, nunca tendo se conformado com a liberdade que seu marido pretendia a si reservar”.
Diante das evidências levantadas pela polícia, em dezembro de 1949, Dagmar teve o mandado de prisão preventiva expedido pela Justiça. Entretanto, a viúva de Ivo estava foragida.
Ao longo do processo, a polícia de Curitiba, no Paraná, se comunicou diversas vezes com a polícia de Brusque, informando a dificuldade de encontrar Dagmar. A polícia paranaense entrou no caso porque havia informações de que a viúva estaria na casa de sua família, na capital daquele estado.
Após várias tentativas, no dia 15 de março de 1950, Dagmar foi encontrada. Entretanto, perícia realizada na viúva constatou que ela estava doente e precisava de diversos exames. Por este motivo, ela veio para Brusque e foi direto para o Hospital Azambuja, onde ficou recolhida sob custódia até o seu julgamento.
De acordo com o processo, os depoimentos de Dagmar apresentaram algumas contradições. Primeiro, a jovem disse que ela e Ivo eram felizes e que a relação do casal não “tinha nada de anormal”.
Depois, admitiu que brigavam com frequência e que mentiu na primeira vez porque não queria manchar a memória do marido.
Também declarou acreditar no suicídio porque, segundo ela, Ivo tinha vários motivos. O principal é que ela já havia lhe falado que iria embora com as filhas do casal. O outro, a má situação financeira, já que havia contraído várias dívidas.
Ao longo do processo, a mãe de Ivo, Alvina Haendchen Renaux, pediu para que fossem feitas perícias em alguns cheques e nota promissória assinados por Ivo, com o objetivo de atestar se a assinatura era autêntica ou não.
A perícia foi feita em um cheque de 300 mil cruzeiros em favor de Paulo Krueger, datado de 26 de julho de 1949; 200 mil cruzeiros em favor de Elisa K. Ayre, datado de 26 de julho de 1949; 180 mil cruzeiros para Guilherme Meyer, também de 26 de julho de 1949 e uma nota promissória no valor de 200 mil cruzeiros de Germano Krueger, com vencimento para 28 de julho de 1949. As quatro assinaturas foram analisadas e confirmadas como autênticas.
O laudo pericial do corpo de Ivo Renaux também consta no processo arquivado na Casa de Brusque.
No documento, os peritos explicam que o tiro que matou Ivo se encaixa nos padrões de suicídio. “O disparo se encontra dentre os comuns de suicídio, região atingida se enquadra entre as geralmente eleitas para tal fim e a trajetória seguida pelo vulnerante, por si só não garanta a hipótese do homicídio, não se chega todavia ao limiar dos elementos suficientes para provar o suicídio”, diz.
“Em matéria de perícia criminal é pacífico o princípio de que os tiros a certa distância com o cano da arma encostado, tanto podem ocorrer nos casos de suicídio como nos de homicídio”.
Foi necessária uma reconstituição da forma com que o corpo de Ivo foi encontrado já que, na tentativa de salvá-lo, ele foi mexido antes da chegada da polícia e dos peritos. De acordo com o processo, na reconstituição, não restou dúvidas que o industrial foi encontrado deitado de barriga para cima, com as mãos entrelaçadas na altura do peito e coberto até o pescoço. Ainda segundo o laudo, tudo leva a crer que Ivo foi baleado durante o sono.
“O caso ivo Renaux, da forma como está atualmente instituído, estudado à luz dos conhecimentos da criminalística, leva qualquer perito criminal, ao convencimento seguro do homicídio”, analisou, na época, o perito criminal Carlos de Melo Eboli.
O julgamento do caso criminal que movimentou Santa Catarina foi marcado para o dia 30 de novembro de 1950. Os jurados sorteados foram Euwaldo Schaefer, Axel Krieger, José Rubick, Olibio Auto Leite, Isidoro Mafra, Edmundo Albani e Odilon Santana Gomes. Coube a eles a responsabilidade de definir o futuro de Dagmar Sylvia Renaux.
A sessão do júri foi bastante tensa e acompanhada por um grande público. Todos queriam saber, em primeira mão, o desfecho da história.
O julgamento durou 16 horas, com debates acalorados entre defesa e acusação. Para a promotoria, não restava dúvidas de que Dagmar matou o marido e que o crime foi planejado. “Não há crime perfeito. O dedo de Deus sempre aponta o criminoso. Dagmar Sylvia Renaux, havia muito, arquitetara eliminar o marido. Malograda a tentativa, por ineficácia de meio – por vidro na comida da vítima – esperou ela, confiante uma oportunidade”, disse o assistente do Ministério Público.
A acusação seguiu dizendo que Dagmar era “uma mulher experimentada, sobretudo, no que toca a assuntos criminais. Afeita à leitura de romances policiais, assistente assídua de filmes rocambolescos, conhecedora no manejo do revólver, servido de uma temperamento paradoxal, hábil na difícil arte de dissimular, afeiçou-se, assim, nos meandros do crime. Tornou-se uma criminosa em potencial”.
A promotoria usou como principal prova a forma como o corpo de Ivo foi encontrado.“A posição e postura em que fora encontrado o cadáver, de modo inequívoco, evidencia que Ivo foi assassinado”.
“Toca as raias do ridículo, se não fosse sumamente pitoresco, as insinuações de Dagmar, de que Ivo se suicidara, à vista da sua crítica situação financeira…Porventura, será crítica a situação de um homem que percebe anualmente Cr$ 525.000,00? Será difícil a situação de uma criatura que tem um patrimônio de cerca de Cr$ 3.000.000,00 para fazer face a uma dívida de Cr$ 500.000,00?”, continua.
A acusação também chamou a atenção o fato de que, na noite anterior à morte, Dagmar pediu para retirar a chave do quarto do casal e para uma das empregadas dormir no sótão e não no quarto no segundo andar, próximo onde o corpo de Ivo foi encontrado.
“Fato bastante significativo é a acusada ter providenciado a retirada da chave do quarto do casal. Não menos importante a ordem dada por ela à empregada Elvira, para ir pernoitar no sótão. Uma e outra circunstância falam do cuidado da acusada em ficar a sós no andar superior, para melhor executar o crime, maduramente premeditado”.
A promotoria também levantou a hipótese de as empregadas estarem encobrindo Dagmar, principalmente porque elas só foram ouvidas pela polícia três dias após a morte e por haver contradições em seus depoimentos.
“Durante três dias passaram na companhia e sob a influência da astuta Dagmar e, por muito tempo, continuaram elas ao serviço da elegante dama”.
A defesa, por sua vez, apresentou três laudos médicos dizendo que é possível uma pessoa sobreviver por alguns instantes a um tiro na cabeça e, assim, fazer alguns movimentos. Uma das principais questões em todo o processo, era como era possível Ivo dar um tiro na própria cabeça, deixar a arma ao lado da cama, entrelaçar as mãos e se cobrir antes de morrer.
Os advogados de Dagmar também apresentaram as declarações de Lydia Kreutzer, que trabalhou durante dois anos como cozinheira da mansão. De acordo com ela, pessoas ligadas a Ivo foram procurá-la na cidade de Videira, com o objetivo de que ela desse declarações contra Dagmar.
Ela informou que questionaram se ela sabia se Dagmar mandava tirar a chave do dormitório do casal quando Ivo retardava a sua vinda para a casa quando estava na companhia de amigos e ela respondeu negativamente.
Ela também negou que Dagmar tenha mandado colocar vidro moído na comida de Ivo e afirmou ainda que nunca falou isso para ninguém. Ela também declarou que o advogado da família Renaux ficou zangado com suas respostas porque já havia informado em Brusque que ela iria afirmar que recebeu ordens de Dagmar para dar vidro moído ao marido.
A defesa ainda destacou a situação financeira de Ivo e o fato de Dagmar já ter lhe informado que pediria o divórcio.
Depois de 16 horas de julgamento, chegou a hora de os sete jurados se reunirem e darem seu veredito. Por unanimidade, eles consideraram que Dagmar era inocente.
A promotoria não se conformou com a absolvição de Dagmar e pediu a anulação do julgamento por “violação da incomunicabilidade dos jurados”. De acordo com a acusação, devido ao grande número de pessoas acompanhando o julgamento e a falta de estrutura do Fórum de Brusque, foi inevitável que os jurados tivessem contato com o público durante a sessão, o que poderia ter influenciado o resultado.
“Durante os intervalos dos trabalhos da sessão, houve “promiscuidade” – tanto valeu se comunicarem jurados com a assistência (um deles, até, conversou com a ré)”.
O Ministério Público apresentou ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) um abaixo-assinado informando que os “jurados que compuseram o Conselho de Sentença tiveram livre oportunidade de se comunicar com a assistência (público), pois esta, nos ditos intervalos, invadiu, inevitavelmente, o recinto”.
O sub-procurador do estado, entretanto, não reconheceu a necessidade de anulação do julgamento. Na decisão, argumentou que durante a sessão a acusação não reclamou em nenhum momento sobre a possível quebra de incomunicabilidade dos jurados.
“As provas apresentadas pela acusação, em sua fragilidade, a começar pelo exame cadavérico, não convenceram aos julgadores. Meros indícios, que se foram suficientes para a pronúncia, eram e são, como esse egrégio tribunal verificará, imprestáveis e fracos para uma condenação. A acusação não passou das conjecturas e das suposições, como se vê das próprias razões de apelação do Dr. Assistente, onde mais se compraz a imaginação do que a realidade”.
Na ocasião, os jurados também se manifestaram, declarando que “em observância ao que foi recomendado pelo juiz presidente do júri e na conformidade das nossas responsabilidades de julgadores, não mantivemos qualquer comunicação com outra pessoa, nem entre nós reciprocamente, durante todo o tempo do julgamento da acusada, sendo o nosso voto proferido de acordo com a nossa consciência, em face da convicção que formamos através do debates e leitura de várias peças do processo durante o julgamento”.
No Tribunal de Justiça, os desembargadores também decidiram pela validade do julgamento. “Tem-se a impressão que a hipótese é, efetivamente, de homicídio e não de suicídio. Do outro lado, sente-se que o autor desse crime outro não foi senão a própria mulher da vítima. Não exibem, contudo, os autos, a meu juízo, provas decisivas e concludentes do maritricídio”.
Para a decisão, os desembargadores levaram em consideração vários fatores, o principal foi o fato de que o exame cadavérico só foi realizado oito horas depois, já no Hospital Azambuja, e não na cena da morte.
“Conforme laudo impugnado, o local da ocorrência foi destruído, não sendo aguardada a chegada da autoridade competente para o devido levantamento, sendo que o exame cadavérico se efetuou no Hospital Azambuja, mais de oito horas após o fato, e quando a vítima já estava preparada para o sepultamento”.
“Há no processo duas versões que se contradizem, mas qualquer delas aceitável. O júri entendeu aceitar a de que não se tratava de homicídio, e por isso, louvou-se certamente, na prova testemunhal e nos laudos provocados pela defesa”.
“Não há como reformar-lhe o veredictum, face a soberania que lhe é outorgada pela Constituição Federal, soberania que tem que ser desde logo acatada pela Superior Instância, uma vez que tal decisão não seja, como no caso sub-júdice, proferida manifestamente contrária à prova dos autos”, finaliza a decisão.