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A bola de neve da jurisprudência

Nas últimas semanas, ficou mundialmente famoso o caso do bebê inglês Charles Gard, de dez meses de idade, que sofre de uma doença gravíssima, sem esperança de cura. O sistema de saúde do Reino Unido defende o desligamento dos aparelhos que mantêm o menino vivo, mas os pais de Charles enfrentam uma batalha judicial pelo […]

Nas últimas semanas, ficou mundialmente famoso o caso do bebê inglês Charles Gard, de dez meses de idade, que sofre de uma doença gravíssima, sem esperança de cura. O sistema de saúde do Reino Unido defende o desligamento dos aparelhos que mantêm o menino vivo, mas os pais de Charles enfrentam uma batalha judicial pelo direito de cuidar dele até o fim.

Na semana passada, o juiz da vara criminal de Brusque autorizou uma mãe a fazer o aborto de um bebê de 28 semanas, diagnosticado com a síndrome de Edwards, doença genética que produz má formação fetal e dá pouca chance de sobrevivência ao bebê. A justificativa da sentença é de que não se pode impor à mãe a carga de aguardar o final de uma gestação dessa natureza. A decisão contraria a lei vigente no país, que considera o aborto como crime e só o permite em casos de estupro e risco de morte para a mãe. O poder judiciário, no entanto, faz uso da interpretação de princípios para abrir exceções, e na prática, criar novas leis. O argumento é a defesa do princípio da dignidade humana da mãe, que conflita com o princípio da defesa da vida do bebê. O caso que abriu essa série de “precedentes” foi o da anencefalia. O Supremo Tribunal Federal julgou que bebês anencéfalos podem ser abortados em nome da dignidade da mulher. Mas síndrome de Edwards não é anencefalia. A decisão de Brusque, que, aliás, não é inédita, aproveita a mesma fundamentação da anencefalia e a aplica a outro caso, ampliando o leque de liberação do aborto. O que vem a seguir? Tome-se a mesma sentença e troque apenas o nome da doença, justifique-se o mesmo sofrimento “imposto” à mãe e poderemos, num processo contínuo, liberar o aborto para qualquer tipo de má formação. Não duvidem que, num futuro próximo, haverá quem solicite essa autorização para bebês diagnosticados com síndrome de Down, ou qualquer outro problema, que imporá sofrimento aos pais e à própria criança após o nascimento. Isso se, antes, não se consolidar a decisão do STF do ano passado, que considerou que o aborto, até o terceiro mês de gestação, não é crime.

Quando rompemos com um princípio basilar, abrimos espaços que sempre serão alargados.
Soube, extraoficialmente, após a conclusão da primeira versão desse artigo, que o bebê de Brusque havia nascido de parto normal e falecido horas depois, o que tornou desnecessário o aborto. Isso muda apenas as circunstâncias do caso particular, não a questão em jogo. O sofrimento é uma realidade que nem sempre compreendemos, mas o modo de lidar com ele faz toda a diferença. Os pais de Charlie Gard choram o sofrimento do menino e chorarão sua morte, mas isso será superado com a certeza de que estiveram ao lado dele até o fim. O aborto ou a eutanásia, ao contrário, podem aliviar parte do problema momentaneamente, mas, por mais que se tente amortecê-lo, o sofrimento da consciência por não ter dado a chance não tem data para terminar. Isso, sim, eu considero “prejuízo de ordem psicológica imensurável e irreparável”, para usar os mesmos termos da sentença.