Além da sala de aula: professora de Brusque ensina português e auxilia imigrantes em busca de emprego
Projeto atende haitianos e venezuelanos que escolheram morar no município em busca de uma vida melhor
Em busca de um recomeço, diversos haitianos e venezuelanos deixaram o país de origem e decidiram lutar por uma vida melhor. Muitos chegaram em Brusque, conhecida por ser um polo industrial com muitas oportunidades de emprego. Mas o idioma acaba sendo a pedra no caminho para aqueles que não sabem português.
Há quase sete anos, um projeto coordenado por uma professora de Brusque ensina o idioma para os imigrantes. Mais de 300 alunos já passaram pelo curso gratuito. Os estrangeiros deixaram o país de origem após os desastres naturais, no caso da Haiti, ou devido à crise política, econômica e social vivenciada na Venezuela.
O fato de não compreenderem o português dificultava não só a comunicação, mas a inserção no mercado de trabalho. Uma boa parte dos imigrantes que chegam em Brusque só falam crioulo haitiano, outros já entendem inglês, espanhol ou ainda o francês. Através da participação no curso, alguns imigrantes também ganharam a oportunidade de um emprego no município.
Demanda do mercado
Encabeçado pela professora Anelede Feuzer, o projeto atende atualmente 20 pessoas que se reúnem todas as quintas-feiras à noite na escola Araújo Brusque, no bairro São Luiz. Marilande Feuzer, irmã da professora, é empresária e começou a receber diversos imigrantes em busca de um emprego. Ela precisava de funcionários, mas, infelizmente, as pessoas não compreendiam o que ela falava.
Após identificar a demanda, a empresária sugeriu para Anelede iniciar um projeto com o objetivo de ensinar o idioma para essas pessoas conseguirem se comunicar de maneira mais fácil. “Em um primeiro momento eu pensei ‘meu Deus, é muita coisa”.
Como ela já tinha uma carga extensa com as aulas que lecionava, além dos compromissos pessoais, a professora ficou apreensiva se daria conta do projeto. Passado um mês de reflexão, ela optou por ajudar os novos moradores do município com o objetivo de proporcionar “dignidade para eles”.
Pequenos passos
O projeto iniciou com aulas aos sábados à tarde que aconteciam na própria igreja em que eles frequentavam após o pastor ceder o espaço. “Não tinha mesa, cadeira, quadro, material nenhum para poder trabalhar. Eu fui atrás e consegui 20 mesas, 20 cadeiras, lápis, borracha, cadernos, livros, tudo o que eu precisava”, recorda a professora.
Ela buscou doações nas escolas do município, algumas inclusive que estavam reformando e não usariam mais aqueles itens. As aulas aconteceram dessa forma por aproximadamente três anos. Em 2017, a igreja precisou do espaço onde acontecia o curso e a professora teve que transferir as aulas para uma escola no município.
Inicialmente, a Anelede ficou preocupada se conseguiria se comunicar com os alunos. No entanto, graças a um curso de francês que fez antes de viajar para a Europa, a professora não teve dificuldade para conversar com os haitianos, que também são alfabetizados no idioma. “As vezes rolava até mímica no começo”, conta aos risos.
Além do português, a professora também proporciona palestras com convidados selecionados e com temas que possam agregar na vida dos alunos no Brasil. Alguns dos assuntos já abordados foram a leitura, poesia, alimentação, geografia, história, segurança no trânsito e as leis no Brasil.
Ao final das aulas, os estudantes receberão um certificado de que conseguem se comunicar em português. De acordo com a professora, o documento é importante para que o imigrante possa comprovar na empresa que ele estudou o idioma ou ainda para fazer o passaporte. “Neste ano a escola Araújo Brusque vai fornecer uma certificação para os alunos com a frequência e notas das provas. Eles são obrigados a ter no mínimo 75% da frequência para receber o diploma no final do ano”, explica a responsável pelo projeto.
Diversas nacionalidades
Até 2019 somente imigrantes haitianos haviam passado pelo projeto, mas isso mudou com o tempo. A professora já contabilizou a presença de cubanos, árabes e venezuelanos, que começaram a chegar em maior número a partir de 2019, um pouco antes da pandemia.
“Nós temos uma constituição, é a nossa carta magna. Ela garante a saúde, educação, dignidade, respeito para todos que vêm para o Brasil”, salienta a professora.
Mesmo com os alunos que conseguem compreender um pouco melhor o português devido às semelhanças com o espanhol, os venezuelanos recebem as aulas junto com os haitianos. A professora comenta que os alunos acabam se ajudando, pois os que estão há mais tempo realizam a tradução para quem está começando.
Em busca de uma vida melhor
Quando chegaram no curso, muitos dos alunos venezuelanos estavam doentes devido à infecção pela bactéria H. pylori, que atinge o estômago. Anelede comenta que para não passar fome, os estrangeiros se viam obrigados a se alimentar com restos que encontravam no lixo.
“Eles comiam comida do lixo, mas não eram moradores de rua. Eles são médicos, professores, advogados, mecânicos, músicos e outras várias profissões. Eles trabalhavam, tinham casa, uma vida normal. Com essa reviravolta que deu na Venezuela, eles vieram para o nosso país sem nada. Até conseguirem sair da Venezuela, eles precisaram comer comida do lixo e coisa parecida. Esses são os depoimentos deles”, conta a professora.
Por medo de represálias que possam enfrentar aqui no Brasil ou que possam se estender para os familiares que ficaram na Venezuela, os alunos preferem não falar sobre o assunto com a imprensa. “Eles vivem aqui e mesmo assim têm muito medo. Eles preferem não aparecer, não se manifestar, tocar a vida em silêncio e buscando o que conseguem reconstruir na esperança de que em algum dia o país deles possa oferecer a oportunidade para eles voltarem”, lamenta Anelede.
Mais conhecimento
Anelede recorda com carinho de um aluno em específico que marcou o projeto. O haitiano Hendy Bernard entrou no curso e sinalizou para professora que gostaria de ingressar na universidade. Pensando nisso, a professora fez uma cobrança mais forte com o aprendizado do aluno.
A dedicação dele era notável, pois além de nunca faltar nas aulas, o imigrante estava sempre disposto a aprender. ”Ele brincava que não poderia ter nem o sotaque, pois eu cobrava muito dele. Ele tinha o objetivo de ir para universidade e eu faria o que ele havia me pedido”.
A professora comenta que o aluno participou do projeto entre 2015 e 2016. Ele levou cerca de 1 ano e 2 meses para aprender o português. Já em 2017, ele foi matriculado na universidade, onde cursou engenharia de produção. Depois que iniciou o ensino superior, o haitiano deixou de frequentar as aulas de português, visto que não havia mais necessidade.
Com o passar do tempo, Anelede perdeu o contato com o ex-aluno, mas na última vez que teve notícias foi informada de que ele havia concluído o curso superior e que estava constituindo uma família. “Me marcou pois ele queria ir para a universidade. Eu atendi o pedido dele e ele conseguiu”, comenta com satisfação.
Assistência além das aulas
Por serem imigrantes, em grande parte, refugiados, muitos têm problemas com passaporte. Pensando nesta demanda, a professora passou a auxiliar os alunos para regularizar a situação. Além de ajudar no encaminhamento para ter a documentação em dia, inscrição das crianças nas escolas e creches, ter acesso à saúde, a professora também busca o auxílio de advogados, que são necessários em alguns casos.
Aos fins de semana, Anelede também é acionada por um aluno ou outro que tem dúvida sobre a interpretação de algum texto ou busca por alguma orientação.
“No projeto a gente acolhe. Com o auxílio da professora Tatiana Amorim, que já me ajudou em 2018, eu posso fazer esses outros atendimentos, como ligar para consulado, para a Polícia Federal para entender a situação de cada um”, explica.
A Secretaria de Desenvolvimento Social de Brusque também presta apoio e atendimento para os estrangeiros que moram no município. O Cadastro Único contabiliza 539 pessoas de outras nacionalidades inscritas em programas sociais e que residem em Brusque, conforme os dados obtidos no CECAD – ferramenta que mostra as características socioeconômicas das pessoas incluídas no CadÚnico de programas sociais do governo federal.
No entanto, esse número não necessariamente representa todas as pessoas estrangeiras que residem no município, somente as que estão cadastradas ou recebem algum tipo de auxílio da Secretaria.
De acordo com os dados da pasta, grande parte dos estrangeiros cadastrados em programas sociais e que residem em Brusque são venezuelanos, totalizando 299 pessoas, seguidos pelos haitianos, que somam 200 imigrantes.
Além deles, a pasta também atende pessoas da Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Cuba, França, Guiné-Bissau, Inglaterra, Portugual, Uruguai e Paraguai.
“Deste universo de pessoas de outros países, temos um total de 106 famílias que apresentam na composição familiar a presença de filhos que deixaram seu país em busca de proteção”, pontua a Coordenadora do CadÚnico e programa Auxílio Brasil, Rita Suzana Naisser Karoleski.
É importante salientar que todos os refugiados e imigrantes no Brasil têm direito de se inscreverem no Cadastro Único e de participarem do Programa Auxílio Brasil independente da condição migratória ou da nacionalidade. No entanto, os interessados devem apresentar um perfil compatível com as exigências do programa, além de ter os dados atualizados nos últimos 24 meses. É fundamental que não ocorra divergência entre as informações declaradas no cadastro e com as que constam em outras bases de dados do governo federal.
Empecilhos e inserção no mercado de trabalho
A professora reforça que além de ensinar a língua portuguesa, o projeto também tem o objetivo de ser humanitário. Diversas empresas passaram a procurar Anelede em busca de pessoas para compor o quadro de funcionários. Após muitos homens serem contratados por intermédio da professora, entre março e abril deste ano, 20 mulheres haitianas que participaram do projeto foram contratadas para trabalhar.
Recentemente, os alunos visitaram o projeto de fabricação de sabonetes no Instituto Federal Catarinense (IFC). O objetivo da visita foi fazer os alunos aprenderem sobre a produção para que possam ter uma renda extra em casa.
Em Brusque, o Sine já recebeu pessoas de diversas nacionalidades, como cubanos, dominicanos, colombianos, venezuelanos, haitianos, quenianos e marroquinos. No entanto, o sistema não contabiliza a nacionalidade dos candidatos a um emprego. O principal empecilho para os estrangeiros na hora de conseguir uma vaga no mercado de trabalho é o idioma. Soma-se a isso a falta de experiência comprovada na carteira de trabalho, escolaridade e a documentação.
Para o diretor do Sine de Brusque, Fernando Castro, projetos como o da professora Anelede são fundamentais como auxílio para os imigrantes, “até para que eles possam se sentir inseridos na sociedade”.
Ele aponta que saber o idioma é uma questão importante para a comunicação com os empregadores e futuros colegas de trabalho. Na avaliação do diretor, existe “uma certa resistência das empresas em relação à contratação de algumas nacionalidades”.
“É de grande importância que as empresas de Brusque estejam atentas a essa situação e possibilitem a contratação dos imigrantes e refugiados. Por se tratar de uma previsão legal do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quando estabelece que todos são iguais perante a lei, pois o artigo prevê a equidade tanto a brasileiros como ao estrangeiro, o qual lhes garantem o direito à vida, liberdade, segurança, igualdade e propriedade”.
Alguns desses estrangeiros refugiados que chegam em Brusque eram formados e atuavam como médicos, professores entre outras profissões. No entanto, quando chegam no Brasil precisam trabalhar em outras áreas. “Para que estes imigrantes possam exercer a profissão de seu país de origem, ele deverá primeiro validar o diploma no país, e às vezes essa tramitação pode gerar custos expressivos para realidade do imigrante”, analisa Fernando.
A professora conta que faz questão de manter contato com o setor administrativo da empresa para saber se os alunos estão indo bem no emprego. “Essas mulheres com trabalho tem outro sorriso, o semblante delas é outro. Elas ganham a dignidade e voltam a ter o direito de sonhar, de ter uma vida digna, de poder construir uma família, pois eles também mandam dinheiro para aqueles que ficaram no país”, finaliza.
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