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Bernadete Rocha: “Os obstáculos aparecem para nosso crescimento”

 

Carinhosamente conhecida como a ‘Dete do Yoga’ ou a ‘Dete da Charlotte’, Bernadete Rocha é luz e inspiração por onde passa. Quanta sabedoria adquirida e compartilhada em 70 anos de vida! A menina que saiu de Brusque ainda adolescente para morar com uma tia em São Paulo, em busca de trabalho, encontrou não só uma atividade profissional, mas também conheceu o Yoga e iniciou uma trajetória de garra e determinação. Lá foi vendedora de roupas, atendente de enfermagem, massoterapeuta, esteticista e instrutora de yoga. Casou-se, teve o primeiro filho Rodolfo e logo ficou viúva, retornando para Brusque após 23 anos fora, no início dos anos 80.

De volta à terra natal, com o filho de um ano de idade, a mulher forte e versátil, continuou sua caminhada trabalhando como massoterapeuta e esteticista, já que por aqui ninguém sabia o que era yoga, até que aos poucos foi propagando a novidade e conquistando adeptos da prática. Veio o segundo casamento, a segunda gestação e o nascimento da filha Charlotte, o que Dete considera um recomeço em sua vida. A mãe que não conhecia nada sobre Síndrome de Down se viu diante do desafio de aprender a lidar com algo totalmente novo. Na época não havia livros sobre o assunto e os médicos acreditavam que a menina “mongoloide” não iria sobreviver, mas Bernadete não se deixou abalar e mostrou que com amor e dedicação o impossível era possível.

A incansável mãe não transformou apenas a vida da filha, mas trouxe esperança para milhares de outras famílias, que passaram a procurá-la em busca de orientações e respostas para tantas dúvidas. Assim surgiu a Escola Charlotte e em 30 anos de trajetória da entidade, Dete é referência para pais e profissionais de todo o Brasil e do exterior. Ela já perdeu a conta de quantas crianças passaram pela sua vida, mas tem a certeza de que tudo valeu e vale a pena. Charlotte se tornou uma mulher independente que realizou o sonho de casar e vive a vida com alegria, alheia aos julgamentos.

André Groh – Como a Dete descreveria sua menina interior?
Bernadete Rocha – Vejo a Bernadete como a menina do Jogo do Contente. Eu não conhecia a história da Pollyana, mas um dia alguém lá em São Paulo falou que eu parecia a menina do Jogo do Contente e então fui pesquisar do que se tratava a história. E hoje, vejo que a menina do Jogo do Contente de ontem, tornou-se uma mulher forte, porque acredita na alegria, acredita que sempre o melhor virá, por maior que seja o obstáculo à frente. A Bernadete filha, mãe, esposa, profissional, da Escola Charlotte, vive porque realmente acredita que o atributo da alegria manifestado, faz toda a diferença. É uma mulher que tem agilidade, versatilidade, e quando surgem os obstáculos, ela olha e contorna, segue adiante porque tem certeza de que tem coisas lindas esperando por ela. Os obstáculos aparecem para nosso crescimento.

AG – Como foi receber a notícia de que sua filha era especial?
BR – Deus falou comigo de uma maneira muito doida na noite posterior ao nascimento da Charlotte. Ela estava comigo no quarto, porque achavam que ela não iria sobreviver e eu comecei a escutar os gritos de uma mulher que eu sentia no meu coração, que eram gritos de mãe. Depois vim a saber que essa mãe tinha acabado de perder sua filha de 15 anos num acidente de carro. Essa notícia me acordou para a realidade que eu estava vivendo. Eu chorava pela minha filha ter nascido diferente e aquela mãe chorava por ter perdido a filha. Ali ficou muito claro para mim que dor não se mede, dor se sente. Pedi perdão a Deus por estar chorando pela minha filha ser diferente e pedi perdão para a minha filha. Desde então, meu choro transformou-se em força e coragem. Olhei para a Charlotte e falei: a mãe não sabe nada sobre você, mas nós duas juntas vamos aprender. A partir dali comecei a estudar sobre Síndrome de Down, a pesquisar e a querer entender o metabolismo, o funcionamento do cérebro. Começou a busca e qual foi a surpresa quando de repente minha casa já não era mais casa. Muita gente passou a me procurar querendo saber o que eu fazia, pois ela estava melhorando, caminhando, andando de bicicleta, dançando. E eu com muita alegria fui compartilhando com os pais.

AG – Na sua opinião, o que o momento atual vem nos ensinar?
BR – Estamos diante de um obstáculo que é mundial. Estamos sendo forçados a nos conhecer, a conhecer quem compartilha o teto conosco. Até então era bom dia, boa noite, todo mundo na correria, com mil tarefas, cansado, sem de falar direito dentro de casa. E agora, estamos tendo que voltar a olhar nos olhos. Estamos tendo a oportunidade de praticar o desapego, e aprender que não precisamos de tantas coisas quanto achávamos que precisávamos. A gente pode viver muito bem com muito menos, agradecendo por termos alimento, teto, por podermos comprar um quilo de arroz a mais para dar para nosso irmão que não tem. Todos nós humanos no Planeta Terra estamos nessa corrente. Estamos nos dando as mãos e nos ajudando. São pais ajudando os filhos nas suas atividades escolares, toda a família tendo que ajudar nas tarefas do lar, e aí passamos a dar mais valor a quem sempre faz esse tipo de tarefa. Passamos a entender que somos todos diferentes e que cada um dá o melhor que tem. Creio que vamos sair dessa experiência, melhores, valorizando as pessoas com quem convivemos e até mesmo a mãe natureza. A aprendizagem é mundial. Muita gente está sofrendo porque se recusa a aceitar essa realidade. As pessoas que estão tristes, deprimidas, são as que não estão aceitando a aprendizagem, que estão lutando contra isso que nos cabe viver agora. Lutar contra é entrar em luto, e o luto é horrível.

AG – Qual o seu sentimento em relação a Escola Charlotte? O que ela representa?
BR – Eu diria que minha alma está nesta escola. É tão gratificante nesta caminhada reencontrar homens e mulheres que passaram por aqui. Tenho uma gratidão tão grande às mulheres que abraçaram comigo essa causa. Sempre digo que nós trabalhamos para um plano maior e quando Ele quer que a gente faça alguma coisa, e quando a gente entra em sintonia Ele coloca tudo que a gente precisa pra dar certo, as pessoas, o lugar,… Portanto, estamos aqui a serviço desse plano na terra. Eu vejo a escola como uma prestadora de serviços para os pais que estão se deparando com esse obstáculo, que a princípio querem derrubar, mas aí a gente compartilha nossa experiência de vida e ensina que é preciso contornar. Que essa criança veio ensinar, e que podemos aprender que é possível servir muito mais uns aos outros. Tenho imensa gratidão às inúmeras pessoas que já passaram por aqui, tantos voluntários. A escola é uma entidade que educa, reeduca, trabalha as inteligências humanas, e orienta os pais que vêm pra cá, aprender a trabalhar com seus filhos que têm necessidade de estímulos.

AG – Como está sendo o trabalho da Escola Charlotte atualmente e quais os planos futuros?
BR – Diante da situação atual, temos feito um trabalho através de vídeo conferências, para incentivar mães e pais a continuarem estimulando seus filhos em casa, pelo menos um pouquinho a cada dia, porque esse trabalho é fundamental. A escola também está envolvida numa nova causa que é angariar alimentos para as famílias de alunos que precisam. Muitas pessoas estão engajadas, fazendo doações e somos gratos. Temos nos esforçando bastante para manter as portas abertas e garantir que a estrutura esteja disponível para quando as atividades retornarem. A rifa de dia das mães será sorteada no dia 29 de julho e seguimos com a vaquinha on-line, que seria revertida para a construção da nova escola, mas está sendo usada para a manutenção da escola. Agora o momento é esse, mas temos certeza de que lá na frente algo grandioso virá e vamos sair disso fortalecidos.

O plano a longo prazo, é a construção da sede própria da escola. Temos o terreno pago, que fica próximo ao Colégio Cultura, o alvará da construção está ok e todo o encaminhamento está feito. Iremos esperar isso passar para retomar a campanha em prol da construção. Esse é nosso grande sonho, que tenhamos nossa sede própria e que o dinheiro que se investe atualmente em aluguel, possa ser usado para ajudar na melhoria de vida dos alunos, e no preparo de profissionais para darem continuidade aos trabalhos. Temos muitos casos de alunos que precisam esperar anos para fazer consultas e avaliações com especialistas, exames, cirurgias, e o desejo é investir nisso.

AG – Como avalia a questão da inclusão?
BR – Posso dizer que de uma maneira até egoísta, esse processo de inclusão em Brusque, começou com a Charlotte. Por que ela não podia ir em uma escola de natação? Se hoje dou aulas de yoga na Gaivota é por gratidão ao Rogério Moritz que abriu as portas quando eu só ouvia não. Da mesma forma na dança, devo muito a Dona Romilda Müller e a Janete Zen. Lembro que a Dona Romilda atendia a Charlotte na sala da casa dela. Depois continuou com a Janete e por anos com o Betinho Ghislandi, por quem até hoje temos um carinho imenso.

A inclusão começou desse jeito, eu querendo abrir as portas e as portas se fechando. Muitos questionavam por que eu queria matriculá-la na escola regular, e eu dizia que era porque ela tinha que conviver com as outras crianças. Na época não se utilizava essa nomenclatura: inclusão. Se falava em integração. E na minha concepção de mãe, uma criança aprende com a outra, imitando, então pensava que ela precisava conviver com crianças ditas normais para imitar e aprender o que fosse possível. E 34 anos depois eu digo: a inclusão na lei é uma realidade, não tem volta, mas na prática temos muito que aprender, porque a própria nomenclatura está errada. Inclusão. Por que está tudo excluído então?! Olha que realidade dura. Eles estão excluídos. Lembro que quando a Charlotte frequentou a escola, participei de várias reuniões para explicar que a Síndrome de Down não era contagiosa. As professoras reclamavam da dificuldade que ela tinha para aprender. Não havia professor auxiliar. Mas assim foi indo. Uma mãe acreditando e desafiando as pessoas a acreditarem também.

Foto Ana Roberta Venturelli