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Apaixonado por futebol, roupeiro do Brusque recuperou a visão e lutou pela vida

Adílson Meneses foi cego dos 13 aos 20 anos e hoje é um dos grandes nomes nos bastidores do quadricolor

Adílson Rodrigues Meneses é um nome que pode não ser familiar ao torcedor do Brusque, mas é, sem dúvidas, um dos grandes personagens da grande fase que vive o quadricolor. Aos 42 anos, está no clube desde 9 de junho de 2018 e já conquistou a Copa Santa Catarina e um acesso à Série C do Brasileiro na primeira competição nacional de que participou. Qualquer bate-papo com o paulista é suficiente para descobrir que seu conhecimento sobre futebol é vasto. Mas a trajetória do roupeiro do Brusque é maior e mais vitoriosa do que qualquer conquista no futebol.

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Os óculos pesados, de “fundo de garrafa”, têm nada menos que 17 graus, e denunciam logo de cara que Adílson tem problemas de visão, mas não torna visível o fato de que ele já foi cego, dos 13 aos 20 anos de idade. Nem de que ele foi adotado por traficantes em uma favela de São Paulo, ou de que enfrentou o alcoolismo sozinho, nem de que começou a trabalhar como roupeiro apenas em 2008, nem de que por seu conhecimento já foi consultado por técnicos para dar conselhos sobre tática e escalação.

A infância e a bolada

Filho de pais alagoanos humildes, Adílson nasceu em 3 de fevereiro de 1977 em Assis, município paulista localizado cerca de 440 quilômetros a oeste da capital do estado. Durante a maior parte da infância, no entanto, foi criado na Vila Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, e teve infância humilde.

Apaixonado por futebol, se tornou torcedor do São Paulo aos 10 anos de idade. Foi em 27 de fevereiro de 1987, quando seu irmão, flamenguista, o levou a uma partida entre Guarani e São Paulo, em Campinas.

Era nada menos que a final do Campeonato Brasileiro do ano anterior. Após o gol de Careca no último minuto da prorrogação, o tricolor empatou a partida em 3 a 3, superou os donos da casa nos pênaltis e conquistaram seu segundo título brasileiro. A vitória improvável, de alguma forma e guardadas as devidas proporções, poderia ser comparável na sequência da vida daquele que era o mais novo são-paulino.

A vida de Adílson muda completamente três anos depois do título do São Paulo. Ele atuava como goleiro no tradicional Nacional Atlético Clube. Uma bolada certeira no rosto o fez desmaiar. Quando acordou, estava cego.

De acordo com ele, o impacto desenvolveu quase imediatamente a catarata congênita que possui. A partir dali, a vida de Adílson mudava completamente de rumo.

Zoinho

“Quando eu fiquei cego, minha doença não tinha cura. Eles se separaram quando eu tinha 15 anos, e nem minha mãe nem meu pai quiseram ficar comigo. Minha mãe foi para o interior de São Paulo com meus irmãos, meu pai voltou para Alagoas com uma amante, e eu fiquei. Cego dos dois olhos, sozinho”, conta Adílson, com naturalidade assustadora, em entrevista a O Município.

A maior parte da conversa se deu no seu pequeno, aconchegante e modesto apartamento no Centro de Brusque, em prédio onde moram diversos funcionários e jogadores do quadricolor. O clube banca a moradia dos funcionários.

Sem instrução, os pais viam Adílson mais como um peso do que alguém que conseguiria seguir em frente. Sem o apoio deles, o garoto foi adotado por traficantes da Favela do Pó, no distrito de Brasilândia, em São Paulo. Por ser cego, ganhou o apelido de Zoio, ou, mais carinhosamente, Zoinho.

A convivência naturalmente o levou às drogas, especialmente ao álcool, que se tornou um de seus maiores problemas. Cicatrizes de golpes de faca e uma cicatriz de um tiro em uma das pernas são marcas daquela época. As feridas eram resultados de confrontos entre traficantes rivais, de favelas distintas. “Eram situações em que grupos tentavam invadir a favela, chegavam atirando”, explica.

“Os traficantes cuidaram muito bem de mim”, continua. “No tempo em que fiquei com eles, fiz quatro operações, na tentativa de recuperar a visão.”

Adílson organiza rouparia do Brusque após partida contra o Ituano | Foto: João Vítor Roberge

A 10ª operação

A irmã mais velha de Adílson o buscou da Favela do Pó quando ele já tinha 19 anos. Sua mãe o aceitou de volta, mas o alcoolismo ainda era um problema grave. E até então, o jovem já havia passado por nove operações para recuperar a visão, sem sucesso.

O ano era 1997. Aos 20 anos, durante exames de rotina no Hospital Central Sorocabana, uma oftalmologista, Maria José Ferro, chamou Adílson e a família, pois queria fazer uma tentativa. “Ela disse que tinha esperança, e eu já tinha operado nove vezes. Não tinha muito a perder.”

A cirurgia consistia, inclusive, na extração definitiva de seu olho esquerdo, com substituição por prótese. A anestesia local tornava a experiência agonizante. Adílson ouvia, sentia o desenvolvimento da operação, enquanto Maria conversava com ele. Após o fim da cirurgia, só restava esperar. Não havia garantia alguma de sucesso.

Na noite que se seguiu, Adílson viveu um episódio que não faz ideia se foi real, sonho ou imaginação durante um período de abstinência do álcool.

“Eu tô deitado, sem saber se tô dormindo ou não. Na minha cabeça, vem uma enfermeira, que diz que iria me dar um medicamento. Mas ela pediu antes para fazer uma oração comigo. Orou por mim, e nunca me deu medicamento, foi embora”, conta o roupeiro do Brusque, emocionado.

Adílson acorda aos prantos, com os curativos mexidos e os esparadrapos descolando com as lágrimas. Maria chega, pergunta o que houve. O jovem relata que a enfermeira não aplicou nenhuma medicação. A oftalmologista se surpreende, afinal não havia prescrito medicamento algum.

A cavidade do olho esquerdo, já extraído, é examinada, e não há nenhum problema. “Quando a médica tira o curativo do olho direito, comecei a enxergar ela, a visão toda embaçada. Comecei a chorar. E ela me abraçou, e chorava comigo. Minha irmã chegou e também chorava. Eu tava enxergando. Vendo ela novamente”, recorda. Eram apenas 5% de sua visão.

Adílson estava enxergando, sete anos depois do acidente. Precisava de óculos de 25 graus, amarrados em suas orelhas, para auxiliá-lo. A previsão dos médicos era de que a visão fosse perdida novamente entre os 35 e os 40 anos. Ele tem 42, e usa oito graus a menos do que usava.

A escalada

O vício no álcool é superado um ano e meio depois. Determinado a recuperar sua vida e, em suas próprias palavras, “ganhar o respeito dos pais novamente”, Adílson se isola, pouco tempo depois da operação, em um sítio muito distante, propriedade abandonada de seu pai. Sem energia elétrica nem água encanada, ele passa a morar em uma casinha de pau-a-pique.

Faz colchões e travesseiros com cascas de feijão em sacos de náilon, usa panelas velhas de barro e gás do candeeiro para cozinhar vegetais disponíveis, como feijão, milho e abóbora. Espanta mosquitos e insetos à noite queimando esterco seco. Dorme no meio do gado quando vêm as crises de abstinência. Recoloca o terreno em condições aceitáveis. Faz a ordenha do gado.

Recupera-se.

“Meu pai me visitava a cada dois meses, e na primeira visita ele já se surpreendeu com o que eu estava fazendo. Ali aprendi a valorizar a vida. Saí curado, morando ali por um ano e meio.”

Já não bebia quando voltou a São Paulo. Sua mãe o acolheu de volta, e vivia com dificuldades financeiras. “Apesar destes problemas, ela foi muito batalhadora, estudou uma profissão e abriu seu próprio salão de beleza. Fui pegando o exemplo dela, fui batalhar”, explica.

Adílson trabalhou como cobrador de lotações clandestinas, transportando dezenas de pessoas em Kombis e peruas. Quando a situação financeira de sua mãe piorou, um cliente dela, dono de uma metalúrgica, ofereceu emprego a Adílson. Começou varrendo quintal, juntando fezes de cachorro.

“Queria largar depois de três dias. O dono da empresa pediu para eu ficar por pelo menos um mês. Fiquei. Com 30 dias, tive meu registro de trabalho como ajudante geral. Cheguei a ser encarregado de linha de montagem. Sempre gostei de desafios, sempre gostei de provar que sou capaz. Que eu conseguia.” Foram oito anos trabalhando para a metalúrgica, em funções como auxiliar de expedição, conferente, almoxarife e encarregado de segunda linha de montagem.

Vida de roupeiro

Quis uma ironia da vida que o acidente com futebol tirasse a visão de Adílson e que o futebol desse a Adílson o trabalho que ele tanto ama. Por indicação de um amigo, começou a trabalhar como roupeiro. Passou por Central, de Caruaru (PE), o próprio Nacional (clube no qual sofreu o acidente de lhe tirou a visão), CSE, de Palmeira dos Índios (AL), Marcílio Dias, Almirante Barroso, Brasil, de Farroupilha (RS), Camboriú e, enfim, Brusque. Em Palmeira dos Índios, inclusive, viveu um emocionante reencontro com a oftalmologista Maria José Ferro, que havia voltado à sua cidade natal.

A ponte Alagoas-Santa Catarina se deu por problemas familiares. “Tive problema com meu cunhado por causa de drogas em Alagoas. Assim, me mudei e trouxe meu cunhado para cá. Um amigo meu deu o conselho. Comecei a procurar emprego, e outro amigo meu, Marlon, então roupeiro do Marcílio Dias, me ofereceu trabalho como auxiliar dele no time profissional enquanto cuidava das categorias de base”, explica.

O ano era 2015 quando começou a trabalhar no Marcílio, em temporada de rebaixamento no Campeonato Catarinense. Ali, Adílson conheceu Rodrigo Rodrigues, o Rodrigão, com quem fez amizade. Foi ele quem chamou Adílson para trabalhar no Brusque, enquanto trabalhava como gerente de futebol.

Em sua carreira de 11 anos como roupeiro, acumula três acessos às primeiras divisões estaduais, com CSE (AL), Central (PE) e Almirante Barroso. Com o Brusque, onde trabalha desde 9 de junho de 2018, tem o acesso à Série C do Brasileiro e a Copa Santa Catarina de 2018.

“Vivo rouparia porque gosto. Só se é roupeiro se gosta. Porque entende. Quem acha que vai ganhar dinheiro, não adianta, não vai, não ganha. É a que ganha menos no futebol. E futebol profissional sem rouparia não existe. Roupeiro é o primeiro a chegar, último a sair, trabalha sempre sozinho, trabalha para 30 mais de 30 pessoas Calçar, vestir e entregar material a estas pessoas parte do trabalho do roupeiro.”

Adílson nunca foi demitido e reitera o ótimo tratamento que recebe no Brusque, mas avalia o cargo de roupeiro como desprotegido quando olha para o futebol de modo geral. Para ele, é necessário muito jogo de cintura, e quando há dificuldades estruturais, “são dois, três leões por dia para matar”.

“Tem que aguentar piada de jogador, desaforo, aguentar desaforo de comissão. Sempre calado. Porque se tu falar, retrucar algo, jogadores pedem para a comissão, a comissão pede para a diretoria e você vai embora. Não tem estabilidade. Ninguém segura, ninguém diz ‘tem o meu respaldo’. No time pequeno, o treinador não gosta de ti, não vai com a tua cara, dois toques no telefone ele aciona a diretoria, “não gostei desse roupeiro, troca.” E a diretoria troca, claro”, desabafa.

Dificuldades e solidariedade em Itajaí

Em 2016, o Almirante Barroso havia sido campeão da Série B do Catarinense com dois meses de salários atrasados, num período de novos problemas para Adílson. Seu filho Daniel, hoje com 11 anos, caiu em uma praia, furando um dos olhos em um pedaço de madeira. Sem receber e com promessas não cumpridas, o roupeiro ameaçou largar o clube.

“Mas aí, o Paulo Matos, que era gerente de futebol do Barroso, disse que o clube não pagaria, que estavam me enrolando. Ele próprio fez um saque no valor da cirurgia que o Daniel precisava fazer. Custava uns R$ 4,5 mil. Ele me entregou e disse para eu ir pagando como pudesse”, explica, com gratidão pela ajuda fundamental.

Ao fim da temporada, Paulo Matos passou a trabalhar no Brasil de Farroupinha, e levou Adílson junto.

 

“Se não me mandarem embora, fico aqui até chegarmos à Série A” | Foto: João Vítor Roberge

Quadricolor

Na rouparia do Brusque no estádio Augusto Bauer, Adílson elogia o comprometimento do clube. “O Brusque nunca faltou com seus compromissos, fui pago sempre rigorosamente em dia. A única dificuldade é a estrutura física da rouparia. É meio improvisado. Na véspera do jogo, tenho que levar tudo para outro vestiário, porque este espaço é a cadeia do jogo. No dia seguinte, tudo é desmontado e montado lá de novo. Afinal, o estádio não é do Brusque. Em termos financeiros, jamais tive problemas.”

Adílson relata que recusou propostas de Tubarão, Cruzeiro (RS) e Figueirense no período em que esteve no Brusque. Até uma proposta do CSA (AL), clube que disputa a Série A do Brasileiro, foi recusada. A oferta chegou de conhecidos e amigos dos tempos de CSE.

A recusa, neste caso do CSA, é para não se distanciar dos filhos: Daniel, de 11 anos, e Antony, de quatro anos. Eles moram em Itajaí, com a ex-esposa de Adílson, e visitam o pai com frequência. Os pais das crianças se separaram em 2017, e um dos motivos foi as frequentes viagens de Adílson com os clubes por onde passou.

“É uma fase da vida dos meus filhos em que eles precisam da minha presença. Amo Itajaí, mas Brusque é muito sossegada. Se não me mandarem embora, fico aqui até chegarmos à Série A” ri.

Com uma vida tranquila e fazendo o que ama, Adílson é formado em teologia e está apto para ser pastor da Convenção Batista, ofício que pretenderia exercer se um dia deixar o futebol. “Estou tranquilo, sossegado, conquistamos o acesso à Série C. Meu filho de quatro anos torce comigo, gosta do ‘Buscão’, como ele fala. O padrasto dele deu uma camisa do Marcílio Dias, ele nem deu muita bola porque quer a do ‘Buscão do meu papai’. Essas coisas pesam muito.”

Ao lado de seu tricolor, o são-paulino adotou também o quadricolor. Ele conta que nutre carinho muito grande por todos os clubes pelos quais passou, mas que apenas o Brusque tem um espaço tão privilegiado no seu coração.

“Não tenho camisa do CSE, do Marcílio, do Barroso. Tenho do Camboriú, do Brasil de Farroupilha, que foram presentes, homenagens. E uma do Brusque, que o Rodrigão me deu de presente após o título da Copa SC. Quem me deu mais estrutura de moradia, melhor salário, foi o Brusque. Eu virei um torcedor do Brusque. Nunca me apeguei a clube nenhum. Mas virei torcedor do Brusque. Por sempre ter que fazer algo a mais, por esta luta diária, todos os treinadores reconhecem o esforço, têm confiança de que fazemos acontecer. Não tínhamos casers [caixas para transporte das roupas], era tudo em sacolas. O Viton [atual gerente de futebol] batalhou e conseguiu os casers. Viajamos mais tranquilos. Somos apresentáveis. Se eu torço por outro clube que não seja o São Paulo Futebol Clube, eu sou torcedor do Brusque.”


Visão de bastidores

Adílson é um apaixonado por futebol, um estudioso. Observando diversos treinadores, chegou até mesmo a ser consultado por alguns deles, que pediam opiniões sobre abordagem tática e escalações. Um dos exemplos foi Paulo Matos.

“Sempre estudei futebol, sempre observei os treinadores, as maneiras de trabalho. Nunca pensei. Já recebi sugestões para fazer os cursos de treinador. Mas sou muito voltado ao estudo cristão. Sou formado em teologia. Gosto, amo futebol. Mas me tiraria muito de outra parte que amo. Se eu quisesse hoje exercer ministério, pastoreado, eu poderia”, explica.

O roupeiro do Brusque viu o trabalho de quatro técnicos no quadricolor em pouco mais de um ano no clube. Após ser perguntado, ele avalia alguns pontos de cada um deles:

Pingo: “Ele brigava muito pelos atletas. Era um time bom. Muito unido, Pingo sempre fazia churrasco, sempre tinha confraternização. O grupo estava junto pela questão de amizade criada neste ambiente.”

Paulo Baier: Bom time, muito bom. Mas faltava experiência ao Paulo Baier, experiência de comando. Ele ainda agia muito como jogador. Não que os jogadores não o respeitassem, não era isso. Era questão de experiência, maneira de conduzir, conversar.

Marcelo Caranhato: Era o mesmo time do Paulo Baier. O trabalho de campo do Caranhato era fantástico, um dos melhores que já vi. O problema era vestiário. Ele bateu de frente com o elenco. Tinha um perfil mais duro, mais autoritário. O grupo rachou. O que quebrou foi a Copa do Brasil, o jogo contra o Atlético Goianiense [empate em 1 a 1, Brusque foi eliminado]. O Marcelo errou demais nas substituições, o time perdeu, e os jogadores esperavam que ele chamasse a responsabilidade, assumisse. Dentro do vestiário, ele jogou a responsabilidade aos atletas. Ali, tudo quebrou. Ele perdeu completamente o controle. E o time era muito bom.

Waguinho Dias: “Um estilo paizão. Manteve uma espinha dorsal e escolheu a dedo quem queria. Fio e Romarinho, no Tubarão, Magrão, no Marcílio, o próprio Vinícius. Encaixou tudo. Ele teve a espinha dorsal na defesa. Zé Carlos, Ianson, Cleyton, Neguete, Dida, Aírton, Edílson, Ruan. Na frente, manteve o essencial: Jefferson Renan. E veio o [Júnior] Pirambu… O nosso time hoje não tem problema com nada. É um grupo pequeno, de muita parceria. Se tiver tem, se não tiver não tem, se abraça e vamos. O Waguinho e os jogadores ajudam a levar material. O Waguinho carrega as bolas de treino pelo aeroporto. É um ambiente bom, positivo. O Brusque tem muito a crescer.”

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