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Aprendendo a morrer

Talvez uma das características mais marcantes da profissão médica seja o aprendizado contínuo, não somente a necessidade de estar lembrando conhecimentos adquiridos e aprendendo sobre as novas descobertas, mas também o aprendizado no contato diário com os pacientes.

Muitos dos pacientes passam por situações delicadas de saúde e é durante essa fase supostamente frágil que muitos deles nos ensinam sobre coragem, luta, resiliência, paciência, resignação e esperança.

Uma das situações mais difíceis de enfrentar tanto para os pacientes e familiares e também para os médicos acontece quando a morte se aproxima de forma abrumadora e inevitável.

Em geral as pessoas têm muita dificuldade em lidar com a perda de um ente querido mesmo que isto aconteça já com uma idade avançada e daquilo que chamamos “causas naturais”, querendo dizer morrer de velhice.

Ao mesmo tempo, a grande maioria dos médicos tampouco tiveram aulas sobre como lidar com a morte de um paciente e o processo de comunicar a perda de uma vida aos familiares. 

A morte continua sendo um momento de uma grande derrota para familiares, amigos e para os próprios médicos.

Há 2 anos a imprensa noticiou um fato inédito, o falecimento do último homem de um grupo indígena quase totalmente desconhecido que habitava uma região de selva no estado de Rondônia. 

Esse homem na faixa dos sessenta anos, deitou-se numa rede, cobriu seu corpo de penas de guacamayo e esperou, supostamente em paz e com resignação a chegada da morte. Junto a ele morreu uma cultura que nunca conheceremos.

Do que se sabe, esse indígena viveu seus últimos 26 anos sozinho e sem nenhum contato com outros humanos. Conhecido como “índio do buraco” morreu sem que se soubesse sua língua nem sua origem étnica.

Este nome foi dado porque dentro dos casebres que construía costumava fazer um grande buraco e dentro dele montava sua rede. Não se tem conhecimento de nenhum outro grupo indígena com este costume.

Foi visto pela primeira vez em 1996 por membros da Funai e sempre resistiu a todo tipo de contato com os brancos.

A Funai tentou inúmeras vezes entrar em contato para conseguir ajudar e protegê-lo dos desmatadores do agronegócio que invadiam a região onde morava. O último intento de contato foi em 2005, o índio do buraco feriu um servidor da Funai que sobreviveu. Após o incidente a Funai fazia uma incursão por ano para ter certeza que estava bem e vivo.

Cada vez que os desmatadores chegavam perto, o indígena recuava e construía uma nova cabana, em 26 anos construiu ao redor de 53 vivendas. Teve, ao que parece, uma morte pacífica. O instituto de criminalística realizou autópsia que determinou a morte de causas naturais. 

Esse último integrante de uma etnia, uma cultura e uma língua, parece ter dado uma excelente lição de como prever a chegada da morte, aceitá-la, preparar-se para a mesma e morrer em absoluta tranquilidade.

Durante minha vida alguns pacientes me surpreenderam pela sua tranquilidade de encarar seus últimos dias. Era como se tivessem a genética do índio do buraco.

Conseguiram prever que estavam vivendo seus últimos dias, não houve tristeza nem raiva ao saber disto, talvez uma vida bem vivida ajudasse para se sentir em paz e sem sentimentos negativos.

Lembro de seu Eduardo que já com oitenta anos passados e sem grandes problemas de saúde decidiu que ele próprio deveria ter o controle sobre seus últimos dias e sua morte.

Se durante toda sua vida ele tinha sido um homem de enfrentar a vida e seus problemas com muita força e autoridade, com a chegada da morte não poderia ser diferente.

Seu Eduardo tinha apenas os problemas próprios do envelhecimento e das quatro décadas em que tinha fumado mais de uma carteira por dia, embora já estivesse os últimos 20 anos sem fumar. 

Seu andar era lento e arrastando os pés, tinha apenas uma labirintite crônica e suas funções mentais estavam bem preservadas.

Um belo dia ele decidiu entrar na sua cama para não sair mais ou melhor dito, tinha decidido que só tirariam ele de lá já sem vida. Fez isto sem falar nada para ninguém, tampouco para seus médicos. 

Não se interessou por mais nada, queria isolamento e silêncio, foi diminuindo espontaneamente sua alimentação, de forma voluntária e aparentemente sem sofrimento, se manteve calmo e sereno o tempo todo.

Após 30 dias veio a falecer provavelmente após ter sofrido uma embolia pulmonar. 

Sem ele saber, o repouso absoluto na cama formou coágulos nas veias das suas panturrilhas que se desprenderam e foram para o pulmão. Morreu rapidamente, não sentiu desespero, apagou-se lentamente ao longo de alguns minutos. 

Não foi suicídio, teve uma vida longa e vivida plenamente e achava que era o único que deveria decidir sobre sua morte também. 

Surpreendente também foi a forma como seu Luís encarou seus últimos dias, também com mais de oitenta anos bem vividos, teria que iniciar sessões de hemodiálise porque seus rins já não conseguiam fazer sua função. 

Ele conhecia perfeitamente as vantagens e desvantagens da hemodiálise porque acompanhou de perto familiares que faziam hemodiálise.

Recusou o tratamento e retirou-se para sua casa para enfrentar seus últimos dias, teve tempo para se despedir de parentes e amigos, se manteve calmo e sereno e ao que tudo indica escolheu um dia para se desligar do mundo, morreu no vigésimo dia após ficar em coma um dia antes. 

Não tenho nenhuma dúvida que morrer em casa é um luxo e vejo com tristeza como muitos idosos morrem após 60-90 dias numa UTI, ligados ao respirador e longe de seus familiares, esses dias adicionais são dias de sofrimento, não são dias de vida.

A verdade é que temos muito para avançar na área da medicina paliativa, da ortotanásia, da ciência e arte de morrer bem, de preferência em casa e rodeado de familiares e amigos, sem aparelhos, sem sondas alimentares.

Morrer é parte da vida, ao nascer, junto a essa data de nascimento levamos uma data de expiração, mesmo assim a grande maioria das pessoas nunca está preparada para enfrentar esse momento da despedida.

Como diz a famosa médica britânica Iona Heath no seu livro “Questões de Vida e de Morte”: “Os humanos não sabemos o que fazer com a morte”.