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As ideias e os fatos

A filósofa alemã Hannah Arendt, uma das mais brilhantes intérpretes do mundo contemporâneo, chama a atenção para o esfacelamento da tradição, sobretudo a partir do século XIX. Para ela, a tradição, em filosofia política, começou com Platão e Aristóteles, que pretendiam entender os assuntos humanos procurando ir além dos meros fatos da vida humana em […]

A filósofa alemã Hannah Arendt, uma das mais brilhantes intérpretes do mundo contemporâneo, chama a atenção para o esfacelamento da tradição, sobretudo a partir do século XIX. Para ela, a tradição, em filosofia política, começou com Platão e Aristóteles, que pretendiam entender os assuntos humanos procurando ir além dos meros fatos da vida humana em sociedade, buscando dar-lhes um sentido mais amplo.

Em Agostinho, esse sentido tomou a forma das concepções religiosas hebraico-cristãs e, mesmo em tempos mais “laicos”, filósofos como Vico, Kant e Hegel perseguiam esse sentido, que deveria ser o guia da história humana, para além das aparentes incoerências da nossa vida.

Depois que Marx afirmou que nós é que construímos o sentido da história, chegamos, segundo a filósofa, a uma situação em que teorias de todo tipo são propostas e “comprovadas”, porque, dependendo da perspectiva que se adota, pode-se chegar a quaisquer conclusões “coerentes”.

Mas o pior não é apenas chegar, teoricamente, a ideias coerentes dentro de uma determinada ótica, mas o fato de que se pode fazer – e de fato se faz – com que as ideias mais esdrúxulas se tornem “reais”, agindo a partir delas. É assim que Hannah Arendt entende os regimes totalitários do século XX, particularmente o nazismo, de que foi vítima pessoal. Estabeleça-se que os judeus são criaturas inferiores, divulgue a ideia, aja desse modo, sonegando-lhes os direitos fundamentais, e criar-se-á um fato. O mesmo vale se culparmos a propriedade privada pelos males sociais e criarmos um regime que a desfaça.

Criaremos uma “verdade” que se imporá como fato. Assim sobreviveu a União Soviética e o leste europeu e ainda sobrevive Cuba e a Venezuela, negando as evidências, produzindo miséria e violando direitos fundamentais. Mais que isso, mantém ainda uma legião de admiradores. O que aprendemos em história sobre a Idade Média, a Inquisição, o julgamento de Galileu, a relação entre fé e ciência vai na mesma linha. Um eterno repeteco de “verdades” construídas e estabelecidas por uma nova tradição intelectual, que escolhe o que mostrar e o que esconder, de acordo com as conveniências.

Assim está sendo o jornalismo das grandes redes de comunicação, a cultura universitária e o enorme esgoto de construção de narrativas em que se tornaram as redes sociais. Temos que engolir o aquecimento global, a ideologia de gênero, a defesa da corrupção e dos interesses de bandidos de grosso calibre (pela grana suja que deles advém) maquiada de garantismo constitucional. Essas ideias se instalam e produzem os efeitos que pretendem produzir, gerando a história do modo como seus agentes querem que ela seja.

Está difícil manter o estômago saudável nas atuais circunstâncias.