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Boate Kiss: moradora de Brusque sobrevivente da tragédia relembra momentos de terror e fala de superação

Incêndio que matou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas na cidade de Santa Maria completa dez anos nesta sexta-feira

O dia 27 de janeiro é uma data que traz muitas lembranças, aflora sentimentos e traumas na educadora física Jocenara de Fátima Barboza Corrêa, 37 anos. Moradora de Brusque há um ano, ela é uma das sobreviventes da tragédia na boate Kiss, em Santa Maria (RS), que completa dez anos nesta sexta-feira.

O incêndio na casa noturna na madrugada daquele 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas. A tragédia, que comoveu o Brasil, é a segunda maior do país em número de vítimas. Em 1961, um incêndio no Gran Circo, em Niterói, no Rio de Janeiro, vitimou 503 pessoas.

Natural de Santa Maria, Jocenara viveu toda sua vida na cidade gaúcha. Na época, foi procurada por veículos de comunicação para falar sobre a tragédia, mas não se sentia confortável em reviver todas aquelas lembranças. Agora, dez anos depois, ela decidiu conceder sua primeira entrevista sobre o caso.

“Na época eu preferi me retirar, ter meu tempo. Já passei por tudo, as lembranças existem e são muito fortes, mas agora me sinto mais preparada para falar”, diz.

Jocenara veio para Brusque para trabalhar. Formada em Educação Física, ela atua no Sesc e também na Force One, e já se adaptou na cidade. Fez novos amigos e tem uma nova rotina, mas não costuma comentar com as pessoas que estava na boate Kiss naquele 27 de janeiro.

“Eu conto para as pessoas quando tenho muita intimidade, ou quando alguém toca no assunto, relembra o que aconteceu”.

Jocenara foi até a Kiss acompanhada de mais cinco amigas. Na noite anterior, o mesmo grupo de meninas já havia se reunido em outra festa, e a ida para a boate Kiss foi decidida de última hora.

A moradora de Brusque conta que ela e as amigas chegaram ao local pouco depois da meia-noite. Havia fila para entrar na casa noturna, mas quando elas entraram o local ainda estava vazio. Pouco tempo depois, a boate começou a encher. 

“Foram muitas pessoas, bem além da capacidade da casa. A aglomeração era muito grande, muito acima do limite”, lembra.

Jocenara conta que a casa lotou porque era a última festa na cidade antes do carnaval. “Lá em Santa Maria, as boates fecham durante o carnaval porque todo mundo se reúne nas outras cidades da região. Então os estudantes da universidade aproveitaram para juntar os cursos e fazer a festa”.

Jocenara conta que a festa iniciou com uma banda, depois tocou um DJ e a última atração da noite seria a banda Gurizada Fandangueira. Ela e as amigas iniciaram a noite em frente ao palco. Depois do show da primeira banda, Jocenara e uma das amigas foram para outro ambiente da casa. As demais ficaram em frente ao palco.

O fogo começou logo no início da apresentação da banda Gurizada Fandangueira, quando o vocalista acendeu um sinalizador. As faíscas pegaram no isolamento acústico do teto e logo a fumaça tóxica começou a se espalhar.

“Lembro que tinha muito mais fumaça do que fogo. Tanto que quando as primeiras pessoas tentaram sair o segurança barrou, porque não sabia o que estava acontecendo”.

Jocenara e a amiga, que estavam em outra parte da casa, foram avisadas por um rapaz que trabalhava no local sobre o fogo. “Até aí o pessoal estava saindo normalmente, porque ninguém estava vendo o fogo”.

De repente, a situação no local começou a se agravar. “Foi questão de segundos, tudo muito rápido, o tumulto e a fumaça se espalhando rápido. Eu estava com uma garrafa na mão e por causa do tumulto aquela garrafa explodiu e eu me cortei bastante”.

Como as saídas da boate eram pequenas e ainda havia grades em todo o trajeto, Jocenara e a amiga tiveram que se separar.

“A gente ficou presa contra a parede. Eu caí de abdômen para cima e não conseguia me erguer porque as pessoas estavam passando por cima, se empurrando. Foi horrível. Eu caí entre a primeira porta e a porta maior que tinha uns ferros. Lembro que um menino caiu na minha frente, não lembro do rosto dele, de nada, só do desespero de querer sair. Eu agarrei na blusa dele, consegui ficar de joelho e fui engatinhando até lá fora”.

A moradora de Brusque lembra que saiu com a roupa toda rasgada. Perdeu a bolsa e os sapatos e inalou muita fumaça.

“Sai toda suja de carvão, tossindo muito, porque respirei muita fumaça e cuspindo aquela fuligem preta. Consegui encontrar a amiga que estava comigo. Ela queria voltar para pegar a bolsa dela, mesmo eu falando para ela não fazer isso, ela foi, a bolsa estava perto da porta e ela conseguiu sair. Lembro que fiquei muito brava com ela”.

Em meio a toda aquela confusão e desespero, Jocenara começou a perceber que a situação era muito séria só do lado de fora. Bombeiros e ambulâncias começaram a chegar e então os resgates iniciaram.

O estacionamento do supermercado que fica ao lado da boate começou a ser utilizado para depositar os corpos resgatados de dentro da Kiss.

“A lateral inteira do mercado ficou cheia de corpos. Lembro que no começo a gente pensava que estavam só desmaiados, mas logo vimos que estavam mortos. Familiares e amigos começaram a chegar e todo mundo começou a entrar em pânico, porque ali já percebemos que muita gente tinha morrido”.

A educadora física lembra que entrou em desespero. “Eu não sabia o que fazer, como ajudar, eu só estava ali vendo tudo aquilo acontecer. Era muita gente. Não tinha ambulância suficiente, então as pessoas estavam levando os feridos e até mesmo os mortos com seus próprios carros”.

Jocenara recorda que ela e a amiga ficaram preocupadas com as outras meninas que foram para a festa junto com elas, mas como havia um tumulto e muitas pessoas estavam ali, achavam que elas tinham conseguido sair.

“Fui pra casa da minha amiga sem conseguir compreender a proporção de tudo aquilo. Não desejo isso para ninguém, porque não é só a tua vida, é você ficar impotente, não conseguir fazer nada para ajudar. Muita gente que eu conhecia estava lá dentro, pessoas que vieram falar comigo depois que tudo aconteceu, mas não resistiram e acabaram morrendo”.

As quatro meninas que foram para a festa junto com Jocenara não sobreviveram. Uma delas foi encontrada embaixo do palco, muito queimada. Os pais fizeram o reconhecimento pela roupa. Outra foi socorrida com vida, mas não resistiu e morreu tempo depois no hospital. “Fui eu quem convidei para ir para a festa. Eu carreguei esse peso por muito tempo. Tudo isso fez eu mudar muito”.

Jocenara foi para o hospital só depois. Como aspirou a fumaça tóxica, precisou fazer uma série de exames. Também precisou tratar a perna que sofreu uma série de lesões porque foi pisoteada quando tentava sair.

“Eu tive queimadura nasal, fiquei durante três dias cuspindo a fuligem preta. Fiquei toda roxa, precisei fazer tratamento para a perna, que perdeu a sensibilidade”.

Como estava com viagem de férias marcada para São Paulo, Jocenara decidiu ir, mesmo após a tragédia. Esta foi a forma que encontrou de tentar entender o que aconteceu.

“Todo mundo me julgou, mas eu não conseguia mais ficar na cidade. Fiquei 20 dias em São Paulo e todo esse tempo eu não conseguia dormir. Quando voltei, iniciei o tratamento respiratório e para a perna. Foi uma época complicada, desenvolvi ansiedade, não conseguia ficar em locais muito fechados, tive problemas com perda”, diz.

“Você começa a pensar muita coisa. Por que eu sobrevivi e as outras pessoas não? Você começa a contar anos. Cada ano, é uma chance a mais que eu ganho de viver. É tudo muito complexo”, completa.

Jocenara afirma que nunca usou a tragédia para se vitimizar. Inclusive, não gosta de ser chamada de vítima, prefere sobrevivente. 

No ano seguinte ao incêndio, decidiu fazer uma graduação. Tentou vestibular para Psicologia e Educação Física. Conseguiu entrar na faculdade de Educação Física e isso contribuiu para superar toda a insegurança e poder voltar a viver a vida após a tragédia.

“Eu queria fazer algo que pudesse ajudar as pessoas. E me descobri na Educação Física. Os exercícios foram muito importantes na minha recuperação e hoje consigo ajudar muita gente. Foi a forma que eu encontrei de superar tudo o que aconteceu”.

 A educadora física também afirma que a tragédia mudou completamente sua forma de pensar e agir. “Na época eu era meio esnobe e mudei muito a minha visão sobre as coisas. Depois que você vê as pessoas que estavam contigo mortas de repente, é algo que não consegue mensurar, é um filme de terror. Você vê que a vida, realmente, é um nada. Tudo pode acabar em segundos”.

Tatuagem representa a superação | Foto: Bárbara Sales/O Município

Jocenara conta que após a tragédia, a cidade de Santa Maria também teve uma grande mudança.

“As pessoas se preocupam com coisas tão pequenas, com dinheiro, com o que os outros estão pensando, mas nada disso é importante. No incêndio, morreram pessoas com muito dinheiro e pessoas que não tinham nada. Todo mundo é igual. O dinheiro não traz ninguém de volta. E depois de tudo a cidade aprendeu a ter outros valores. Mudou muito”.

Além das lembranças gravadas na memória, o que passou naquele 27 de janeiro de 2013 está eternizado também na pele. Recentemente, Jocenara fez uma tatuagem no pulso com a palavra “survive”, que em português significa sobreviver. Ela também tem um par de asas tatuado nas costas, em homenagem a uma das amigas que morreu na tragédia.

“Eu escolhi tatuar ‘survive’ porque eu não quero ser uma vítima, é pra lembrar que eu superei, que eu melhorei muito como pessoa, mudei minha postura. Hoje eu tenho pressa em ser feliz”, diz.

Série na Netflix

A tragédia da boate Kiss é retratada na minissérie Todo Dia a Mesma Noite, na plataforma de streaming Netflix. A produção estreou no dia 25 de janeiro e é inspirada no livro Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss, da jornalista Daniela Arbex.

A série explora os bastidores do incidente, desde as circunstâncias que levaram ao incêndio até as polêmicas na investigação e a luta das famílias por justiça.