Botuverá, 61 anos: dialeto bergamasco atravessou oceano e virou tradição cultivada até os dias atuais na cidade

Primeiros imigrantes do norte da Itália chegaram ao então povoado de Porto Franco em 1876

Botuverá, 61 anos: dialeto bergamasco atravessou oceano e virou tradição cultivada até os dias atuais na cidade

Primeiros imigrantes do norte da Itália chegaram ao então povoado de Porto Franco em 1876

A promessa do Eldorado nas terras americanas e a busca por melhores condições de vida levaram os imigrantes italianos ao povoado de Porto Franco, a antiga Botuverá, no século XIX. O município completa 61 anos de emancipação político-administrativa nesta sexta-feira, 9.

‘Nde la valìs e ‘n del cör di emigràncc, gh’è riàt anche i tradissiù. Ól dialèt che l’è öna di tante lèngue Regionài. Botuverà la cüra ól dialèt bergamàsch, lèngua tradissionàl di emigràncc ch’i vé de Bèrghem e di Proìnce de la Regiù Lombarda del Nord Italia.

Em português: na mala e no coração dos imigrantes, vieram também as tradições. O dialeto é uma variedade regional de uma língua. Botuverá cultiva o dialeto bergamasco, tradição dos imigrantes que vieram de Bérgamo e dos arredores, na região da Lombardia, no norte da Itália.

Coro formado pelos primeiros imigrantes italianos, em 1876. Foto: Arquivo histórico

No mercado, na agropecuária e em diversos lugares da cidade é possível ouvir algumas palavras em bergamasco. Os botuveraenses que mais cultivam as tradições falam o dialeto no dia a dia, em comunidade.

O dialeto bergamasco atravessou o oceano até chegar em Botuverá. A força de um povo sofrido, que enfrentou a miséria, é responsável por semear a cultura no município muitos anos atrás. A vida dos italianos no período da crise foi muito difícil.

“Na segunda metade do século XIX, a Europa passou por uma crise e transformação social que originou pobreza. Os agentes migratórios buscavam imigrantes para trazer ao Brasil em substituição à escravidão”, conta Pedro Bonomini, chefe da Divisão de Cultura de Botuverá.

Os imigrantes que foram para Porto Franco chegaram na região por meados de 1876. Conforme a pesquisadora e reitora da Unifebe, Rosemari Glatz, eles saíram da Europa pelos portos.

Porto de Itajaí no início do século XX. Foto: Arquivo histórico

Um dos portos era o de Bremen, na Alemanha. Depois de semanas de viagem, eles aportavam em um primeiro momento nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

“A Itália de então, apesar de unificada, estava bastante dividida, de forma que era bem comum as vilas terem a própria língua, um dialeto. Um destes dialetos é o bergamasco, que foi trazido por esse grupo de imigrantes [que veio para Porto Franco]”, conta Rosemari.

Com a chegada no Brasil, a última parte do trajeto era feita com barcos menores. Em seguida, o destino eram os portos catarinenses ou de Paranaguá (PR). Rosemari detalha que o fim do trajeto dos imigrantes que colonizaram Botuverá pelo oceano era o porto de Itajaí.

No local conhecido como barra do rio Itajahy havia um barracão para acolher os imigrantes. A pesquisadora comenta que os pioneiros descansavam alguns dias e se alimentavam. Como dependiam das condições do clima para utilizar o rio, era incerto o período em que ficariam em Itajaí.

“A partir de Itajaí, então, haviam canoas que saíam da barra do rio para chegar até o centro de Brusque. Eles permaneceram em Brusque por um tempo, até terem seu lote. Sempre o rio é o guia. Então, como vamos chegar até Porto Franco? Pelo rio”.

Geralmente, os homens iam na frente em mutirão para fazer o desbravamento das terras. Em seguida, vinham as mulheres e filhos. Ainda de acordo com Rosemari, o modelo de ter o rio como guia já era seguido na Europa.

A lenda do Eldorado

O governo imperial brasileiro havia firmado, dois anos antes do registro das primeiras imigrações a Porto Franco, um contrato com o empresário Joaquim Caetano Pinto Júnior, um brasileiro que morava na França, em que autorizou ele a trazer 100 mil imigrantes europeus ao Brasil.

“Em função da falta de mão de obra para a agricultura brasileira, o imperador Dom Pedro II firmou contratos com Pietro Tabacchi, um italiano que estava no Brasil, e com Caetano Pinto. O ‘contrato Caetano Pinto’ foi o que mais trouxe imigrantes para o país”, relata Pedro.

“Contrato Caetano Pinto” trouxe imigrantes para o Brasil. Foto: Reprodução

Oprimidos na Itália, os imigrantes vieram ao Brasil enganados pela promessa do Eldorado, uma cidade imaginária na América. Trata-se da lenda de uma cidade perdida, que seria feita de ouro. A falsa promessa tinha o objetivo de atrair os imigrantes.

“Os agentes atraiam os imigrantes com promessas do chamado Eldorado, da ‘terra boa’, em que ‘plantando tudo dá’. Eles diziam que dava ouro em árvores, que, na verdade, era a banana, que se produz. Havia bastante campanha para que eles viessem”, diz Rosemari.

Pedro conta que as crises na Itália da época, que resultaram na saída de italianos do país, foram ocasionadas pela guerra de unificação da Itália. Na ocasião, os camisas-vermelhas lutaram pela unificação do país, liderados por Giuseppe Garibaldi, esposo da catarinense Anita Garibaldi.

“Eles (imigrantes) estavam desanimados. Muitos migravam dentro da própria Europa em busca de melhores condições. Sem encontrar o que desejavam, os agentes não tinham dificuldades em buscar pessoas para vir ao Brasil”, pontua.

Ilustração do Eldorado. Foto: Ed Carlos/O Município

Diferentes origens e dialetos

Os imigrantes vieram de várias regiões do norte da Itália, sendo a maioria originária da região da Lombardia. Além do bergamasco, outros dialetos chegaram a Botuverá. No entanto, o bergamasco se sobressai.

A capital da região da Lombardia é Milão. A comuna italiana (município) de Bérgamo é a capital da província de Bérgamo. A província envolve outras cidades nos arredores e, na prática, é como se fosse uma “região metropolitana”.

Na região de Botuverá, há também descendentes de cremascos, originários de Cremona, além de trentinos, que vêm da região italiana do Trentino-Alto Ádige; e vênetos, do Vêneto.

“Hoje, em Botuverá, nós ainda falamos o bergamasco, com muitas palavras ‘abrasileiradas’, assim como na Itália estão ‘italianizando’ o dialeto. De todos os imigrantes que vieram para cá, os bergamascos foram em maior número”, diz Pedro.

Ilustração do mapa do Norte da Itália. Foto: Reprodução

“Verdadeiros heróis”

A vinda dos imigrantes não foi nada fácil. Quando chegavam para embarcar, eles precisavam aguardar alguns dias até o navio encher de pessoas para partir. As pousadas na região cobravam valores altos e, sem dinheiro, muitos desistiram de embarcar.

Pedro conta que o acúmulo de pessoas dentro dos navios proliferava as doenças. Havia ainda ratos dentro das embarcações. A quantidade de pessoas também resultava em roubos. Ele reconhece a dificuldade enfrentada pelos pioneiros.

“Algumas famílias, pelas péssimas condições em que eram jogadas nos navios, morriam em viagem. O mar tornou-se a sepultura de muitos imigrantes. O acúmulo de pessoas nos navios proliferava as doenças. Acredito que os primeiros imigrantes foram verdadeiros heróis”.

Pedro Bonomini é chefe da Divisão de Cultura de Botuverá. Foto: Tiago Schumacher/Especial

Botuverá hoje

Passados quase 150 anos da chegada dos imigrantes nas terras que hoje pertencem a Botuverá, o município cresceu ao longo dos anos. A economia passou por uma série de mudanças.

Empresas se instalaram na cidade e o ramo têxtil é forte hoje em dia. Nos anos passados, a força do trabalho vinha por meio da agricultura, e se ampliou tanto para as fiações quanto para a mineração.

“Botuverá cresceu muito, desde quando vieram os nossos imigrantes italianos, época em que nossa economia era basicamente extração de madeira, agricultura e extração de ouro”, afirma o prefeito da cidade, Alcir Merizio.

Foi em 1984 que a primeira indústria têxtil se instalou em Botuverá. Segundo o prefeito, foi a partir daí que a economia do município alavancou e novas empresas abriram as portas na cidade.

Botuverá conta hoje com duas grandes mineradoras. São extraídos aproximadamente 6 mil toneladas de minérios diariamente. A indústria têxtil de Botuverá ainda produz cerca de 5 milhões de quilos por mês.

Alcir Merizio é o prefeito de Botuverá. Foto: Tiago Schumacher/Especial

O crescimento foi tanto que Botuverá, a partir de 2019, passou a ter problemas de energia. As empresas não conseguem mais ligar máquinas que necessitam de energia de alta tensão, em razão do crescimento das empresas. Uma subestação deve ser instalada no município.

Lar para novos moradores

Botuverá passou a ser o lar de novos moradores que vieram de outros estados em busca de oportunidades. Alcir comenta que o crescimento industrial ocasionou na falta de mão de obra, o que gerou novos empregos no município.

“Hoje, Botuverá conta com vários moradores que vieram de muitos estados. Temos pessoas do Maranhão, do Amazonas, do Pará e, inclusive, de fora do Brasil. Temos venezuelanos morando no nosso município”, diz o prefeito.

Alcir considera Botuverá uma cidade receptiva e acolhedora. O número de habitantes do município passou de 4,4 mil para 5,3 mil em 12 anos, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“Botuverá é uma cidade receptiva e acolhe bem nossos migrantes, desde os imigrantes da Itália até agora, com nossos migrantes brasileiros e com as pessoas que vêm de fora do Brasil”, elogia.

Museu preserva cultura bergamasca

O prefeito considera também Botuverá uma cidade turística. Ele menciona o parque das grutas, em que ficam localizada a caverna de Botuverá. Cachoeiras e a Igreja Matriz de Botuverá são outros pontos turísticos lembrados por Alcir.

“Botuverá é conhecida como uma cidade turística. Nosso carro-chefe são nossas grutas, a caverna de Botuverá. É uma das maiores e mais ornamentais cavernas do Sul do Brasil. Além dela, temos cachoeiras, o morro Barão, a nossa Igreja Matriz, que é centenária e muito bonita, além de outras atrações”, valoriza.

A caverna fica na localidade de Ourinho, a 15 quilômetros do Centro. Trata-se de uma caverna com 1,2 mil metros de extensão. O passeio é realizado com guia. O local conta com espeleotemas, que são esculturas feitas pela água.

No espaço há inúmeros “salões” abertos, que alcançam até 20 metros de altura. Para chegar ao primeiro salão, é necessário se abaixar em algumas partes do trajeto e usar capacete. Não é possível entrar no local com celular.

Caverna de Botuverá possui esculturas naturais. Foto: Tiago Schumacher/Especial

Para manter viva as tradições, há também no parque das grutas o museu do Imigrante. No local, algumas das peças são escritas em duas versões: em português e em bergamasco. No museu, um garrafão de vinho, acessório para guardar o vinho, possui a escrita “garrafu de vi”.

“O museu conta a história dos nossos imigrantes vindos da Itália. Temos praticamente 1,5 mil objetos. É um acervo doado pela própria comunidade. As peças contam a vida dos nossos pioneiros que vieram da Itália e se instalaram nas terras de Porto Franco”, finaliza Pedro.

Escrita em bergamasco de objetos no museu do Imigrante. Foto: Tiago Schumacher/Especial

Ainda conforme Alcir, um dos objetivos da administração é incentivar a população ao turismo rural. Ele relata que valorizar a atividade é importante, pois resgata a cultura italiana no município.

O objetivo do incentivo ao turismo rural é garantir um contato maior dos visitantes com a natureza. Trata-se de um conjunto de atividades turísticas desenvolvidas no meio rural, com objetivo de valorizar o patrimônio cultural e natural como opções de oferta turística.

Botuverá: Terra dos Bergamascos

O primeiro episódio da série de webdocumentário “Botuverá: Terra dos Bergamascos”, produzido pelo jornal O Município, está disponível em omunicipio.com.br/terradosbergamascos, Youtube, Instagram, Facebook e TikTok do jornal a partir desta sexta-feira, 9.

O próximo episódio a ser lançado contará com relatos de pessoas que cultivam a tradição do dialeto bergamasco em outros lugares do Brasil e do mundo. Moradores de São Paulo, da Inglaterra e da Itália relatam como o dialeto e Botuverá são vistos ao redor do mundo.

Os novos episódios da série de webdocumentários serão lançados gradativamente. Os lançamentos serão feitos até dezembro. Cada episódio trata de assuntos relacionados à tradição do dialeto bergamasco em Botuverá.

Assista ao primeiro episódio:


Assista agora mesmo!

Veja cenas exclusivas do especial que revela histórias nunca antes reveladas das igrejas de Guabiruba:


Colabore com o município
Envie sua sugestão de pauta, informação ou denúncia para Redação colabore-municipio
Artigo anterior
Próximo artigo