Diretor do Observatório Racial no Futebol analisa punição ao Brusque: “foi, até certo ponto, branda”
Marcelo Carvalho defende responsabilização do clube e lamenta argumentos de jogadores e funcionários
Marcelo Carvalho defende responsabilização do clube e lamenta argumentos de jogadores e funcionários
A manifestação de jogadores e funcionários do Brusque pedindo ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) para que reconsidere a perda de pontos como punição pelo caso de injúria racial contra o meia Celsinho, do Londrina, foi recebida com perplexidade pelo diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho.
Formado em administração, o consultor de marketing Marcelo Carvalho tem MBA em gestão administrativa, com curto período de pós-graduação em gestão do esporte. Durante as Olimpíadas de Tóquio, foi colunista da Folha de S. Paulo. Em 2014, criou o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, produto de suas pesquisas em questões raciais e do gosto pelo esporte.
Desde então, o Observatório produz o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol. É um material com uma análise sistêmica sobre os incidentes raciais no futebol brasileiro. São apresentados os casos de preconceito e discriminação ocorridos de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com compilações de dados. E, no relatório de 2021, evidentemente, o caso do Brusque estará na lista.
“A reação foi de surpresa e perplexidade. Nunca tinha acompanhado reação como essa”, afirma Carvalho sobre a manifestação dos jogadores e funcionários do clube pedindo para que o STJD anule a punição com perda de três pontos.
Na visão de Marcelo Carvalho, o caso se enquadra na lista daqueles em que alguém comete um ato racista não-confessado. A primeira reação do Brusque, na nota publicada em 30 de agosto, prometendo processar Celsinho por falsa imputação de crime, foi o elemento de “novidade” em todo o ocorrido. “O que o Brusque tentou foi uma alternativa nova, muito em decorrência deste momento perigoso do país em que estamos vivendo, no qual atos e opiniões racistas são tratados como liberdade de expressão.”
Em um dos trechos da carta do Brusque, consta: “nossa equipe de trabalho é formada, em sua grande maioria, por afrodescendentes.” O argumento, apresentado também em outras ocasiões, não é qualificado para o diretor do Observatório Racial do Futebol.
“Se pensarmos então em trabalhadores, não se poderá jamais penalizar uma empresa cujo quadro de funcionários tenha pessoas negras? Aí nós invalidamos o debate. Isto nunca significou não termos racismo num ambiente”, afirma. “A partir do momento que você diz que temos grande quantidade de pessoas negras no clube, você não entendeu o que é racismo. O Celsinho está buscando os direitos dele. Não é prejudicar os jogadores, é simplesmente a responsabilização dos culpados.”
“A pessoa pode ser casada com uma pessoa negra. Não é salvo-conduto para nunca ser racista. Até mesmo negros podem reproduzir atos e falas racistas.”
Apesar da possibilidade de a perda de pontos ser decisiva para o futuro do Brusque, Marcelo Carvalho reitera que é a maneira de responsabilizar o clube pelo ocorrido e pelo modo com que lidou na sequência. O principal argumento de jogadores e funcionários é de que eles e a instituição não devem ser punidos por um ato individual.
“Entendo a questão de que o clube pode ser rebaixado por estes três pontos, que a carreira dos jogadores pode ser prejudicada. Mas não é este o ponto, que deveria ser de fato, a luta contra o racismo, a punição. Não pode ser individualizada apenas, especialmente no momento de pandemia com portões fechados, porque há muita responsabilidade do clube sobre as pessoas que estão dentro do estádio”, completa.
Ele lembra os casos em que torcedores atiram objetos no campo e os clubes são responsabilizados com perda de mando, ainda que não haja nenhum envolvimento direto da instituição neste tipo de episódio.
Carvalho também não vê arrependimento do clube pelo ocorrido, e afirma que não se deve abrandar uma punição por conta das consequências que trará a quem for punido nestes casos. “Senão, aí vamos entrar para um caminho muito perigoso, de não punir o agressor porque ele tem uma família, porque tem os amigos… Aí se pensa em não punir por conta das consequências da punição ao agressor pelo ato cometido. A consequência quem sofreu é o Celsinho.”
Carvalho também lamenta não ter havido uma mobilização semelhante, do mesmo tamanho, para sair em defesa de jogadores vítimas de racismo. No dia seguinte ao jogo Brusque 0x0 Londrina, no qual ocorreu o caso, alguns jogadores do Brusque, como Edu, Edílson e Diego Mathias, fizeram postagens em suas redes sociais com a mensagem “diga não ao racismo”. No jogo seguinte, contra o Avaí, jogadores do clube fizeram o gesto antirracista com um joelho no gramado e o punho em riste estendido.
“Esta mesma mobilização [feita para pedir os três pontos] não vejo quando um jogador negro é ofendido por ser negro. A gente não vê esta mesma mobilização. Podemos contar nos dedos partidas em que jogadores deixaram o campo em solidariedade a um jogador que foi alvo de um ato racista. O que se viu no Brusque foi a união em prol do clube.”
Após o presidente do Conselho Deliberativo do Brusque, Júlio Petermann, gritar “vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha” a Celsinho, por usar cabelo black power, o Brusque admitiu a ofensa em nota oficial. Também negou que tivesse havido qualquer ato de racismo, insinuou oportunismo por parte do jogador e anunciou que o processaria por falsa imputação de crime. No dia seguinte a esta nota, fez um pedido de desculpas após receber pressão do público nas redes sociais. E pelo conjunto, o clube foi punido com multa de R$ 60 mil e a perda de três pontos.
“O clube pode ser punido com pontos, multa, jogos com portões fechados, exclusão do campeonato. Punições não são o melhor caminho para uma sociedade melhor, mas responsabilizar os clubes é essencial, principalmente levando em conta o aumento dos casos de racismo. Poderíamos estar falando da possibilidade do responsável ser preso. Dentro das possibilidades previstas, a punição foi, até certo ponto, branda”, avalia Marcelo Carvalho.
O artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) prevê suspensão de 120 a 360 dias para quem não for jogador ou membro de comissão técnica; e perda de três pontos caso a infração “seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva”.
Apesar de o ato ter sido cometido por uma única pessoa, os auditores do julgamento em primeira instância no STJD concordaram em punir com a perda de pontos pelo envolvimento direto do Brusque com a nota emitida dois dias após o jogo. E também pela “institucionalidade” do episódio já que a pessoa julgada é presidente do Conselho Deliberativo.
Além disso, se a infração foi considerada de extrema gravidade, são aplicáveis três penas listadas no artigo 170: perda de pontos, perda de mando de campo e “exclusão de campeonato ou torneio.”
Para Carvalho, a não-oferta de uma alternativa à perda de pontos na manifestação de terça-feira, 26, mostra que não há movimentação nem entendimento quanto à responsabilidade do Brusque enquanto instituição.
“Brigamos por penas mais rígidas. Buscamos a luta contra o racismo, que os clubes entendam seu papel nessa luta, e que sejam responsabilizados. O ato em si ocorreu e o clube foi penalizado com três pontos. É uma pena maior do que a usual do STJD, que geralmente pune apenas com multa. Teve o agravante com a manifestação após a partida, e, no julgamento, tratar a injúria sem o agravante do racismo.”
O diretor do Observatório Racial do Futebol não acredita que a manifestação dos jogadores e funcionários do Brusque alcance o objetivo proposto. “Penso que os auditores do STJD vão tomar conhecimento da nota, mas não deve pesar num possível novo julgamento. O que está estranho é que a punição foi dada e tem a possibilidade de recorrer e esperar um novo julgamento, e o Brusque recorreu. Parece que foi precipitado [se manifestar pedindo a devolução dos três pontos]. O clube devia deixar o Pleno julgar, ir até o Pleno com as novas possibilidades para tentar, talvez, abrandar a punição.”
Marcelo Carvalho explica que casos como os que já ocorreram contra o meia Celsinho, do Londrina, e contra o zagueiro Sandro, do Brusque (em jogo contra o Brasil de Pelotas) são resultado das estruturas sociais e históricas do país.
“Passa muito por como a sociedade brasileira enxerga o racismo, presente na sociedade desde que o Brasil é Brasil, com a escravização, e depois com os reflexos desta escravização, e então não conseguimos discutir a questão racial de fato. Talvez porque pensamos dentro do mito da democracia racial, ou sem entender a gravidade do racismo, que tem como consequência a morte e o genocídio da população negra, além da desigualdade racial, com a maioria da população negra em situação de pobreza.”
Algo que prejudica a questão é o entendimento real de que racismo deve ser tratado como crime. “Como diz Kabengele Munanga, o racismo, no Brasil, é um crime perfeito. As pessoas não se sentem criminosas. Acham que é opinião, brincadeira que não é racismo, ou então dizem que erraram, pedem desculpas, e tá tudo OK. As consequências estão no genocídio da população negra. Nas pessoas se sentirem no direito de tratar mal, com violência.”
“Quando achamos que um pedido de desculpas resolve, estamos longe de debater o que é o racismo. Precisamos entender que não é só insulto e xingamento, precisamos pensar por onde passa a situação da população negra. Precisamos fazer com que pensam duas vezes, ou que sejam punidos. não podemos pensar na dor que pode causar a punição. Até porque nós vivemos a punição todos os dias com o racismo e as pessoas não tem pena de nós”, completa.
A quem defende a luta contra o racismo, Marcelo Carvalho aconselha a se posicionar já no momento em que testemunhar um ato racista, e se colocar à disposição da vítima. “É pensar nas consequências dos mais de 500 anos do país, dos anos de escravidão, dos 133 anos do fim da escravidão e as consequências de todos o processo histórico. A principal contribuição é se colocar ao lado da pessoa que foi agredida.”