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Brusque registra mais de 100 tentativas de suicídios entre crianças e adolescentes nos últimos anos

Especialistas dizem que há um tabu em torno da saúde mental, principalmente entre as pessoas mais jovens

Em 2009, a vida da família de Pedro (nome fictício) mudou completamente com a morte precoce da irmã caçula, Maria (nome fictício). A brusquense tinha 14 anos quando tirou a própria vida.

O ato extremo da adolescente chocou familiares e amigos, que nunca sequer imaginaram que ela estava passando por tamanho sofrimento. “Foi um choque. Eu fiquei me questionando o que a levou a fazer isso, fiquei por muito tempo com esse pensamento na cabeça”, diz.

Pedro conta que semanas antes da morte, a irmã começou a se aproximar da família e dos amigos. “Ela começou a abraçar muito, ser carinhosa, foi até a casa dos vizinhos, dos amigos, como se estivesse de despedindo, mesmo”.

O irmão relata que Maria nunca deu sinais de que estava sofrendo para a família. Entretanto, mais tarde, teve conhecimento que ela já havia manifestado para amigos a vontade de morrer.

“Ela falava em tom de riso, de brincadeira. Era um demonstrativo que ali estava tendo um problema. Para nós, ela não relatava nada”, diz o irmão.

Maria faz parte de uma estatística que cresce a cada ano. De acordo com relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) neste mês, o suicídio é a segunda causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, ficando atrás apenas dos acidentes de trânsito.

Entre 15 a 19 anos, o suicídio aparece como segunda causa de mortes entre as meninas, após as complicações na gravidez, e a terceira entre meninos, depois de acidentes de trânsito e violência.

Ainda segundo o relatório da OMS, mais da metade dos casos de morte por suicídio no mundo ocorre em pessoas com menos de 45 anos.

Na região de Brusque, nos últimos oito anos, foram 11 mortes autoprovocadas entre pessoas de 15 a 19 anos. Sete dos 11 casos foram registrados em Brusque.

O psicólogo Fillipe Martineghi diz que ainda há um tabu em torno da saúde mental, principalmente entre as pessoas mais jovens. “Em muitos casos os problemas de ordem psicológica são julgados como birra, frescura e se ignora. Isso cresce e aí é que mora o perigo. O setembro amarelo vem justamente para isso, para tentar quebrar esse estigma, para que as pessoas comecem a tratar a saúde mental como tratam a saúde física”.

O psicólogo destaca que os adolescentes naturalmente passam por uma fase complicada pois não são mais crianças e nem totalmente adultos, mas sofrem as pressões da vida adulta.

“Existe a pressão para decidir o que fazer em relação à vida profissional, como vai ser inserido no mercado de trabalho. Somado a um mundo cada vez mais acelerado e competitivo. A pressão pode impactar na autoestima, gerar dúvidas, ansiedade, influenciar em como ele se vê, se valoriza”.

Sexualidade também pode influenciar

Fillipe observa que na fase em que os adolescentes estão descobrindo a sexualidade surgem muitas dúvidas e sofrimento, principalmente, quando se assume homossexual. “Quando um homossexual vem procurar ajuda, o sofrimento não vem por causa da orientação sexual em si, vem pela pressão social. Por mais que as coisas estejam mudando, as pessoas estejam mais tolerantes, é muito difícil para um homossexual se sentir livre, leve”, diz.

O processo de aceitação, não apenas da própria pessoa, como dos familiares e amigos, é fundamental. Dependendo de como é esse processo, o sofrimento é inevitável. 

“Isso causa uma grande pressão. Há um medo de que pessoas importantes da família como o pai, a mãe, os avós, comecem a olhar diferente, além da questão da própria valorização social e isso tudo pode levar a um sofrimento muito grande e a atos extremos como o suicídio, sim”.

Passado algum tempo da morte da irmã, Pedro considera que um fator importante que pode ter levado Maria a tirar sua própria vida foi a sexualidade. “Ela estava se descobrindo homossexual naquela época e nossa família sempre foi muito conservadora”, diz o irmão.

“Os pais, os familiares, devem tomar muito cuidado. O meu pai sempre falava que preferia ter um filho morto do que um filho gay. Essa mensagem de ódio, de preconceito, eles ouvem. E o adolescente, que já está passando por uma transformação grande, chega neste ponto e pode buscar, por medo, esse caminho”, completa Pedro.

Tentativas crescem em Brusque

De 2012 até agora, Brusque registrou pouco mais de 100 tentativas de suicídio entre 4 e 19 anos. O número vem crescendo a cada ano, sendo que em 2018 e 2019 disparou.

Em 2012, foram duas tentativas de suicídio nesta faixa etária. Já em 2018 foram 25, e neste ano já foram 27. Muitos deles, inclusive, reincidentes.

Entre os dados disponibilizados pela Vigilância Epidemiológica de Brusque, chama a atenção um caso de 2018, em que uma criança de quatro anos tentou tirar a própria vida.

A psicóloga Adelanta Scuissiatto destaca que as crianças de hoje estão mais adoecidas e com sintomas de depressão. “Há uma tristeza, uma falta de vontade, não querem brincar, choram muito, têm medo de dormirem sozinhos”.

Assim como as crianças, os adolescentes também vem sofrendo com problemas psicológicos. Adelanta é psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CapsI), que está em processo de implantação em Brusque. Apesar de ainda não estar totalmente estruturado, o serviço, que é voltado para crianças e adolescentes de 0 a 17 anos, já vem realizando alguns atendimentos.

A psicóloga destaca que entre os 45 adolescentes que já realizam algum tipo de serviço no local, 44 já tentaram o suicídio.

“Quase 100% do meu público adolescente vem de tentativa de suicídio. O que observo no discurso de todos é que é uma questão de mundo. Quem eu vou ser, como estão as relações da minha família”.

Adelanta explica que a depressão não escolhe uma faixa etária. Além disso, ela observa que há muitas crianças e adolescentes com transtorno de personalidade. Há também um grande número diagnosticado com ansiedade. “A depressão e a ansiedade caminham de mãos dadas em todos os pacientes”.

De acordo com ela, os jovens estão mais sensíveis e ainda há um bloqueio quando se trata de falar abertamente sobre os sentimentos de crianças e adolescentes. 

“Historicamente não fomos ensinados a chorar. O menino não pode chorar porque não é coisa de homem. Já para a menina o choro é normatizado, porque menina é chorona mesmo”, diz. 

A falta de um diálogo mais próximo entre pais e filhos também é visto como um agravante para uma atitude extrema. “Quando a criança chora, a gente pede pra ela parar de chorar. A gente não acolhe aquele choro, não pergunta o que está acontecendo”.

O mesmo acontece com os adolescentes, principalmente quando enfrentam algum problema na escola, como o bullying, por exemplo. “A gente não pede para conversar sobre o bullying. Hoje tenho vários adolescentes que não conseguem ir para a escola devido ao bullying e temos que fazer um trabalho de educação aqui, com professores”.

O estilo de vida de grande parte das famílias também contribui para agravar transtornos psicológicos nas crianças e adolescentes. “Hoje as famílias trabalham para pagar as contas, todo mundo muito atordoado, estressado. As crianças estão cada vez mais sofrendo, e nós tendo cada vez menos tempo para esse sofrimento”, diz.

O psicólogo Fillipe Martineghi ressalta a importância de pais e filhos manterem um diálogo aberto. “Os pais devem procurar saber o que está acontecendo, saber quem são os amigos, como está na escola. Nunca foi fácil ser pai e mãe e com toda essa correria, está mais difícil ainda, mas é preciso conhecer o filho. Hoje, os adolescentes não sentem abertura para desabafar, por medo de os pais não darem bola, minimizarem o que estão sentindo”.

Autolesão não pode ser ignorada

Martineghi explica que a autolesão – forma utilizada para machucar o próprio corpo – está relacionada com a dificuldade de administrar emoções. 

“Quando a pessoa não consegue administrar uma emoção, se sente pressionada, culpada, com raiva, aquela emoção mal administrada ou negligenciada pode gerar uma angústia muito grande, aumentando o sofrimento psicológico e aí vem os comportamentos autolesivos, como forma de aliviar aquela angústia”.

Um estudo prévio realizado em duas escolas de Brusque pelo psicanalista clínico e psicólogo Mário Augusto Eccher identificou que um em cada três alunos praticam autolesão.

A psicóloga do CapsI, Adelanta Scuissiato, diz que a autolesão nem sempre está associada ao suicídio. Entretanto, é um sinal de alerta de que a criança ou adolescente está sofrendo e precisa de ajuda. 

Ela ressalta que os pais devem ficar atentos, principalmente em relação aos adolescentes, que é mais difícil de identificar. “Muitas vezes a mudança de comportamento dos adolescentes é vista como normal desta fase, por isso, demora mais para se identificar. A maioria dos lesionados os pais nunca tinham percebido, porque estão sempre de roupa comprida”.

A orientação da psicóloga é que os pais peçam para olhar os braços e pernas dos filhos, cheguem mais perto e conversem abertamente, se mostrando interessados pela vida dos adolescentes. “É muito importante observar o todo”, diz.

Observe os sinais

Segundo especialistas, pessoas que estão sofrendo transmitem sinais antes de uma atitude extrema. Confira:

– Há uma mudança brusca de comportamento, a pessoa se isola e deixa de interagir com familiares, amigos e colegas de trabalho;

– Elas começam a pesquisar formas de suicídio;

– Falam que cometerão suicídio claramente ou dão a entender, com frases como “eu sou um incômodo para os outros”, “as pessoas ficariam melhor sem mim”, etc.

– No caso de crianças, perdem rendimento escolar.