Buuuuuuu, bicho-papão!
Conforme prometido, o complemento da Redação Comentada que foi publicada na edição deste mês do Like. Porque uma redação comentada sem comentários… é contra as regras! 🙂
Com a palavra, o Professor Deschamps.
Buuuuuuu, bicho-papão!
A redação tem sido o bicho papão dos candidatos aos exames tipo vestibular e ENEM. Quem é professor sabe disso, assim como quem é pai ou mãe de candidato. Depois de termos uma redação dissecada pelo professor Rogério Perego, vamos a uma espécie de ‘continuação’: vamos analisar mais um texto e, sobretudo, analisar a forma como ele foi composto. A partir daí, poderemos elaborar um ‘modelo’ que pode servir de referência na hora de você escrever a sua produção. A redação abaixo é de um feliz estudante que, por essas horas, já vive seu cotidiano de acadêmico de medicina, se é que já não anda fazendo alguma especialização. Trata-se de Fábio Almeida dos Santos, responsável por elaborar um texto para o concurso de vestibular da PUC/RS. Estruturado de forma simples e segura, o texto de Fábio respondia à seguinte proposta: “O ditado ‘Deus é brasileiro’ é um clichê que, embora muito referido, tanto pode ser considerado verdadeiro como falso. Assim como existem os que criticam esse provérbio, também há quem diga que o onipotente escolheu nosso país como símbolo do paraíso. Será verdade? Redija uma dissertação-argumentativa em que você apresente o seu ponto de vista acerca do tema referido”. O resultado foi este:
Na ironia, uma verdade.
I. Deus é brasileiro, diz o ditado. Confiantes nele, várias pessoas acreditam numa saída milagrosa para problemas que parecem não mais ter solução. Em parte, o ditado parece confirmar-se: o Brasil é com certeza um dos mais privilegiados países quanto à sua exuberância natural. Contudo, basta observar-se qualquer capital brasileira para que o ditado acabe ganhando contornos de ironia.
- Ninguém sabe quando surgiu a hipótese de Deus ser brasileiro, e talvez seja igualmente impossível apontar quem a elaborou. Certamente, porém, foi embasada no que temos à nossa volta. O Brasil possui um conjunto de tesouros naturais – uma biodiversidade invejável, clima tropical, abundância de água – que podem ser vislumbrados com prazer em qualquer região do País. A bandeira nacional, a exemplo, nasceu desse alumbramento diante da natureza. Soma-se a isso tudo outro aspecto: jamais se viram grandes catástrofes naturais, como erupções ou terremotos. Claro que há o caso das enchentes, mas trata-se apenas de um sinal de que o paraíso vem sendo desrespeitado.
- Fatores sociais, entretanto, parecem ter sido deixados de lado quando da formulação do ditado. Veem-se no Brasil variadas misérias – e, dentre elas, a fome parece ser a mais absurda. Num país de dimensões continentais e de solo naturalmente privilegiado, parece inconcebível que as pessoas encarem a morte por não terem o que comer. Ou o ditado deve ser esquecido, ou a figura de Deus é que deve ser repensada.
- Por fatores contraditórios como esses, percebe-se que o ditado “Deus é brasileiro” funciona como um paradoxo, certamente criado com o efeito de consolo para um povo que vê na fé uma saída para seus sofrimentos. Mas, se por um lado o ditado não espelha a verdade, por outro funciona como um espécie de alerta: tanta riqueza natural e tamanhos problemas sociais parecem ser um ‘aviso divino’ de que algo está errado. Ou então é apenas mais uma das nossas ironias mesmo.
Por conta disso, podemos dividir essa apresentação em uma estrutura assim representada:
1. Primeiro Parágrafo: a introdução é formada por 4 sentenças relativamente curtas, as quais cumprem estes objetivos:
. APRESENTAÇÃO DE TEMA – ‘Deus é brasileiro (…) não mais ter solução.’
. APRESENTAÇÃO DO PONTO DE VISTA – o ditado deve ser entendido como ironia;
. APRESENTAÇÃO DE DOIS OU TRÊS ENFOQUES (aconselham-se dois) – um enfoque sobre a exuberância natural; outro enfoque sobre a realidade urbana.
2. Segundo Parágrafo: Formado por 6 frases, é o responsável por apresentar dados concretos sobre a afirmativa de que, em parte, o ditado é aceitável.
. ANÁLISE DO ENFOQUE UM; em parte, o ditado é aceitável;
. ARGUMENTAÇÃO: em vista da riqueza natural e da ausência de catástrofes naturais, pode-se argumentar em favor da veracidade do ditado;
. JUSTIFICATIVAS (se possível, fato-exemplo): a bandeira nacional simboliza este caráter, uma vez que o seu verde é comumente associado à natureza exuberante do país. Detalhe: a última sentença do parágrafo neutraliza a crítica que se possa fazer à argumentação da falta de catástrofes naturais, e o redator contra-argumenta: as enchentes, que frequentemente ocorrem no país, não passam de um ‘ sinal de que o paraíso vem sendo desrespeitado’.
3. Terceiro Parágrafo: Formado por 4 frases, é o parágrafo que irá desenvolver a ideia de que fatores sociais comprometem a veracidade do ditado;
. ANÁLISE DO ENFOQUE DOIS; ou esquecemos o ditado, ou repensamos a figura de Deus;
. ARGUMENTAÇÃO: um país escolhido por Deus não poderia estar convivendo com a fome de seus habitantes;
. JUSTIFICATIVAS (se possível, fato-exemplo): um país com a extensão que o Brasil possui não pode admitir que seus habitantes passem fome, isso invalida o ditado;
4. Quarto Parágrafo: 3 frases concluem o texto de forma concisa, mas bastante enfática, sobre a argumentação desenvolvida anteriormente;
. ANÁLISE DOS ARGUMENTOSNOS ENFOQUES UM E DOIS (retomada): a expressão ‘se por um lado (…) por outro’, da segunda sentença, retoma a exuberância natural e a contrapõe à realidade urbana, ressaltando a importância desta em detrimento daquela;
. CONSTRUÇÃO DA IDEIA FINAL (desfecho): a expressão do título é retomada duas vezes; primeiro com a expressão ‘paradoxo’; e segundo com a penúltima frase, em que a expressão ‘aviso divino’ aparece destacada, salientando o caráter irônico que ela carrega.
Obviamente, a leitura desse texto não se esgota por aqui. O título, sobretudo, é nada menos que excepcional. Entretanto, esboçar um modelo de estrutura da dissertação-argumentativa pode ser um bom complemento à edição anterior do Like (#5, de setembro), em que o professor Rogerio Perego comentou detalhes pontuais de outra redação.