Carnaval e cinzas
Sou daqueles chatos contumazes que detestam carnaval. Não
consigo compreender a graça de ser arrastado por um trio elétrico, aos berros,
tentando mostrar uma alegria claramente forçada. Respeito, não obstante, quem
faz disso uma grande brincadeira, e sabe se divertir sem se corromper.
Mas, há algumas décadas, a folia acabava na terça, dando
lugar às cinzas da quarta, num ciclo que lembrava que a vida também exige
recolhimento e reflexão. O que vem ocorrendo desde então é uma progressiva
invasão dessa faixa delimitadora, acompanhada de uma involução educacional que
relativizou os valores morais e fez fenecer o temor religioso, que ajudava a
conter os ânimos e evitar que a vida descambasse num carnaval sem fim.
Infelizmente esse processo tem sido muito bem sucedido. O carnaval cada vez
mais se revela uma fábrica de degradação que não respeita mais o calendário. É
a época de ouro das “modelos” que fazem da nudez e da frivolidade seu meio de vida,
inspirando meninas (cada vez mais jovens) que, na sua vestimenta, nos seus
costumes e na sua mente vazia, transformam essa bizarrice em exemplo a ser
seguido.
As cinzas da quarta fazem falta. Elas nos lembram que essa
carcaça física e suas sensações são transitórias, que envelhecemos e voltamos
ao pó, e o espírito sobreviverá daquilo que de superior formos capazes de
desenvolver. Esse carnaval eterno, com seus blocos e micaretas que avançam os
limites da quaresma, representa o estado de espírito de quem faz da própria
vida um contínuo festim a Dionísio e Afrodite. Isso desequilibra a existência,
aniquilando a consciência em busca do torpor contínuo do álcool, das drogas,
das baladas, da irresponsabilidade e da incompetência em todas as outras áreas
da vida.
Esse carnaval sem fim representa bem o espírito da nação
brasileira. Aliás, é sugestivo que, na terra do jeitinho e da gambiarra, os
desfiles das escolas de samba sejam um raro exemplo de pontualidade,
organização e planejamento. Como diz brilhantemente o filósofo Olavo de
Carvalho, essa baixeza espiritual é a fonte do nosso eterno fracasso político e
econômico, porque a inteligência e a grandeza de espírito devem ser o
fundamento de todas as outras realizações da civilização.
Se a sua religião tem cerimônia de cinzas, não deixe de
participar. Se não tem, não deixe de se lembrar, mesmo sem o sinal exterior, de
que somos muito mais que carne. Se você não tem religião, deixe que a voz da
razão lhe inspire. Não faça da eterna extensão do carnaval a fonte do seu
fracasso humano e espiritual.