Codinome Beija-Flor
A música do Cazuza me faz lembrar do personagem que mais me encantou na televisão. Trata-se do “Beija-Flor”, vivido pelo ator Ângelo Antônio na novela “O Dono do Mundo”, exibida pela Globo em meados de 1990/91.
O que me encantava no Beija-Flor era a sua intransigência ética. Ele era uma espécie de honesto compulsivo, que se recusava terminantemente a participar de falcatruas que sempre lhe apareciam à frente. Em uma licitação que fez para a empresa em que trabalhava, foi-lhe oferecida uma bolada de “comissão”, desde que fizesse vencer determinado concorrente.
Beija-Flor não teve dúvidas e apresentou ao patrão a melhor proposta para a empresa, continuando com sua vida pacata e seu salário mais ou menos. Essa intransigência complicava seu romance com a personagem da Letícia Sabatella, de quem eu, talvez por vingança, esqueci o nome.
Beija-Flor queria que se casassem e vivessem a vida simples e honesta que era a única que ele sabia viver. Mas a Sabatella queria “xícaras de porcelana”, e dizia que não ia se casar com um cara otário, que perdia tanta oportunidade de se dar bem. Por mais que amasse a dita cuja, ele não poderia fazer nada do que ela sugeria. Afinal, como seria feliz com alguém se para isso tivesse que trair a si mesmo? Estava entranhada nele a máxima: “de que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder sua alma?”
Eu curtia, com uma reverência quase religiosa, a simples existência de um personagem como o Beija-Flor no horário nobre da televisão. Tenho saudades do Beija-Flor, nessa época povoada por abutres. Os Beija-Flores não estão preocupados com os resultados que possam alcançar, se lhes serão vantajosos ou não. Eles agem como sabem que devem agir porque isso simplesmente é uma imposição que brota da sua essência interior, que jamais pode ser desobedecida.
Para eles, um pão com ovo frito, fruto de um trabalho honesto e dedicado, tem sabor infinitamente superior às iguarias culinárias que se conseguem com “espertezas”, puxação de saco ou de tapete.
Sua recompensa é aquela paz infantil, que só quem experimenta sabe dar valor. Mesmo que façam algumas bobagens, pois ninguém é perfeito, não descansam até retornar à paz que sua consciência exige.
O filósofo alemão Immanuel Kant chamava isso de “imperativo categórico”, que, segundo ele, a razão impunha à ação dos homens.
Talvez o Beija-Flor originário de cada um acabe simplesmente esmaecido pelas circunstâncias da vida. De tanto ouvir os abutres, muitos acabam acreditando que essa ética intransigente é simplesmente tolice. De qualquer modo, se você sente que o seu Beija-Flor está vivo, alegre-se.
O prêmio para os Beija-Flores pode parecer tolo aos olhos dos abutres, mas é incomparável para quem sabe reconhecê-lo. Não esmoreça. O choque ético de que nossa sociedade precisa passa pela existência consciente de gente assim, que, apesar de tudo, não abre mão de apenas ser o que sua essência determina.