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Conversas de supermercado: bolsa ditadura

Estamos na safra do pinhão, que nos chega da Serra catarinense. No supermercado, a freguesa que havia nascido naquela região, escolhe os maiores e, pela cor da casca, os mais maduros. Ao saboreá-los à noite, sabe ela que são mais deliciosos. Mesmo concentrada na ação de catar o fruto da araucária, não deixou de olhar […]

Estamos na safra do pinhão, que nos chega da Serra catarinense. No supermercado, a freguesa que havia nascido naquela região, escolhe os maiores e, pela cor da casca, os mais maduros. Ao saboreá-los à noite, sabe ela que são mais deliciosos. Mesmo concentrada na ação de catar o fruto da araucária, não deixou de olhar para a pessoa que acabara de lhe dirigir uma carinhosa saudação.

— Como vai, dona Iolanda? Não sei se lembra de mim. Sou o Paulo Silveira. A senhora foi minha professora no primeiro ano do primário e também dos dois meus irmãos. Olha já faz tempo, mais de 40 anos. A senhora tratava os seus alunos com o maior carinho e a gente nunca esquece da primeira professora.

— Sim, lembro bem de vocês. Era uma escadinha. A cada ano, chegava um. Vocês foram muito bons alunos. O mais velho, o Vicente, foi o melhor aluno da sua turma. Lembro-me, inclusive, que ele passou no vestibular pra estudar Direito na federal e foi trabalhar como advogado no interior do Paraná. Já formado, veio me visitar. Foi um gesto que me deixou emocionada. Depois, só fiquei sabendo da sua vida por comentários e até pelos noticiários. Mas, nunca mais o encontrei pessoalmente. Como ele está?

— Como a senhora sabe, na advocacia, meu irmão trabalhou num sindicato rural e acabou sendo perseguido pelo governo militar. Andou desaparecido por uns anos. Ninguém sabia onde ele andava, nem nossos pais. Foi um tempo de muita aflição. Quando começou a abertura política, minha mãe publicou uma carta num jornal da época e ele então resolveu mandar notícias. Foi um alívio para a família.

— Com a anistia, o Vicente voltou a trabalhar como advogado. Foi também professor universitário, voltou pra política e acabou sendo eleito prefeito.

— Sim, disso fiquei sabendo. Na época, todos comentaram esse fato. E hoje, continua na militância política?

— Olha, dona Iolanda, o Vicente está morando na praia de Perequê. Casou, tem filhos e netos, diz que está velho e não quer mais saber de política. A senhora não imagina. Ele ficou rico. Recebe uma boa aposentadoria da universidade, outra do INSS, diz ele que complementada pela Caixa da OAB. Ainda por cima, ganha aquela tal de Bolsa Ditadura. Olha, tudo somado, dá um dinheirão por mês. Não sei bem, mas acho que muito mais de 25 mil reais. Para mim, que sou professor estadual, parece uma fortuna.

— O Vicente mudou muito, dona Iolanda. Não parece mais aquele advogado e militante político cheio de ideais. A senhora não vai acreditar. Ele diz que agora só quer descansar e cuidar da família. Na verdade, passa o dia todo em frente do computador acompanhando o movimento da bolsa de valores. Virou um investidor. Pelo que um filho dele me disse, ganha mais de 15 mil reais todos os meses, comprando e vendendo ações. A vida é assim. Na juventude, queremos transformar o mundo. O tempo passa e a velhice nos deixa acomodados.