Lembro que, no começo dos anos 80, eu e outros médicos recém-formados estávamos em um curso recebendo instruções sobre saúde pública por parte de técnicos do Ministério da Saúde. Um colega salubrista explicava que, nos casos de tuberculose resistentes à terapia tríplice habitual, deveríamos usar um novo antibiótico, a Rifampicina, que havia mostrado sua eficácia ao ser adicionada à terapia padrão.
Naquela época, já era bem conhecido o aparecimento de bactérias resistentes aos antibióticos, como a penicilina, ampicilina e cloranfenicol.
Conhecendo esse fato, perguntei ao colega salubrista se não era conveniente que o governo limitasse o uso da Rifampicina, que já era vendida livremente sem necessidade de receita em todas as farmácias.
Isso porque, por uma lógica básica, o uso indiscriminado do antibiótico faria com que em pouco tempo aparecessem cepas do M. tuberculosis resistentes também à Rifampicina e se perderia essa nova arma no combate à tuberculose.
Para minha surpresa, o colega respondeu que não tem como limitar a venda de um fármaco cujo fabricante tinha investido muito dinheiro até conseguir comercializar seu medicamento.
Evidentemente, os governos têm que legislar em favor da população e não têm nenhuma obrigação de responder aos anseios e necessidades da indústria farmacêutica, principalmente em casos como o relatado.
Já na década de 90 começaram a aparecer relatos de tuberculose resistente à Rifampicina em vários países do mundo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem alertando há vários anos sobre a emergência de uma série de bactérias resistentes (chamadas de superbactérias) a todos os tratamentos antibióticos conhecidos.
O grupo é composto por seis bactérias: Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus aureus, Enterococcus faecium, Acinetobacter baumannii, Pseudomonas aeruginosa e Enterobacter spp.
O principal fator que provoca o aparecimento de microorganismos resistentes aos antibióticos é o uso excessivo de antibióticos, tanto para tratar enfermidades humanas quanto na agropecuária.
Para se ter uma ideia, 70% da produção mundial de antibióticos é destinado ao uso na agropecuária, sendo que nesse setor o uso principal é de tipo preventivo e não curativo.
Todos nós, sem sabermos, consumimos vários tipos de carne e produtos de origem animal que já vêm com uma quantidade de antibiótico. É fácil imaginar que temos em nosso organismo bilhões de bactérias resistentes a muitos antibióticos.
Um estudo publicado na revista Lancet, em 2019, calcula que naquele ani mais de um milhão de pessoas perderam a vida por causa das superbactérias. A maioria das mortes atribuídas à “infecção generalizada” tem como fator causal provável uma destas cepas de bactérias super-resistentes.
Para nosso desespero, uma de cada 5 mortes provocadas pelas superbactérias é de uma pessoa com menos de 5 anos de idade.
Especialistas alertam para o fato de que, devido ao uso excessivo de antibióticos durante a pandemia de Covid-19, houve um aumento das cepas de superbactérias. Em alguns países, ao redor de 80% dos pacientes com Covid-19 receberam antibióticos (ineficazes contra o vírus SarCov-2), quando os que tinham infecção bacteriana concomitante provavelmente não passavam de 10%.
Ainda, estudos mostram que triplicou a detecção de casos de superbactérias no Brasil após a pandemia.
Em relação aos antibióticos existe, também, outro problema: todos os antibióticos que apareceram nos últimos 40 anos são variações moleculares dos antibióticos já conhecidos. Em outras palavras, não apareceu na última década nenhuma categoria nova de antibióticos.
Muitos grandes fabricantes de medicamentos desativaram suas pesquisas sobre novos antibióticos há mais de uma década sob alegação da escassa rentabilidade.
É provável que o uso da inteligência artificial no desenvolvimento de novos antibióticos possa diminuir os custos e incentivar os investimentos para a criação de novas moléculas.
De fato, recentemente, o pesquisador Jon Stokes, da Universidade McMaster de Hamilton, no Canadá, relatou ter encontrado um antibiótico seletivo contra cepas resistentes de Acinetobacter baumannii usando recursos de inteligência artificial.
Recentemente, o microbiologista Kim Lewis da Universidade Northeastern de Boston relatou o descobrimento da Clovibactina, que foi isolada a partir de bactérias que antes não podiam ser cultivadas em laboratório. Estudos iniciais revelaram que a Clovibactina foi eficaz contra Staphylococcus aureus super-resistente.
Há também relatos na literatura médica do uso de outra técnica para combater as infecções por superbactérias, se trata de cultivar em laboratórios vírus denominados de “fagos” que são capazes de invadir e destruir uma superbactéria específica.
Evidentemente esta técnica exige dispor de um laboratório de microbiologia altamente especializado, uma raridade no Brasil.
Se estima que no ano 2050 podemos ter mais de 10 milhões de mortes provocadas pelas superbactérias no mundo. Como conseguir impedir essa tragédia anunciada?
Podemos começar fazendo uso adequado dos antibióticos e não fazer automedicação. Muitas vezes, as pessoas tomam antibióticos sem necessidade, muitas infecções são de causa viral e os antibióticos não têm nenhuma eficácia contra vírus.
É importante seguir as prescrições do médico que prescreveu o antibiótico, respeitar os horários e completar o tratamento pelo período prescrito. Toda vez que suspendemos o tratamento antibiótico antes do tempo prescrito por achar que já estamos curados, aumentam as chances de desenvolver superbactérias em nosso organismo.
É importante comprar apenas o número de comprimidos necessários para o tratamento completo. Não se pode descartar comprimidos de antibiótico no lixo, pois muitos desses vão parar no esgoto ou nos aterros, onde podem facilitar o desenvolvimento de bactérias resistentes ao tratamento.
Para a grande maioria das pessoas é totalmente incompreensível que um ser querido perca a vida por causa de um microorganismo e que a medicina possa perder a batalha contra uma bactéria. Mas devemos lembrar que, ao longo da evolução, a espécie humana vem travando essa luta contra os microrganismos de forma contínua e foi somente a partir da década de 1930, com o surgimento da penicilina, que foi possível reverter a alta mortalidade que as doenças bacterianas causavam.
Ainda estamos em tempo de evitar que no ano de 2050 as mortes provocadas pelas superbactérias superem o número de mortes por câncer e impedir o avanço vertiginoso deste grande problema de saúde pública.