Corria o ano de 1981, e apesar do tempo transcorrido guardo esta lembrança nitidamente. Era nossa primeira aula prática da disciplina de psicopatologia a ser realizada num hospital psiquiátrico muito prestigioso, que se localizava na periferia de Quito, cidade com um milhão de habitantes naquele tempo. Lembro que cheguei cedo junto a um colega e fomos recebidos por uma jovem vestida com avental branco, de nome Maribel, que se dizia enfermeira.
Ela iniciou com uma conversação articulada e coerente, porém, após alguns minutos começamos a perceber que algo não estava certo, havia demasiada extroversão na sua forma de se expressar. Foi meu primeiro contato com um paciente com transtorno mental. Maribel era portadora de esquizofrenia e estava internada: um dos seus delírios era se disfarçar de médica ou enfermeira.
No mês seguinte presenciamos uma cena mais comovente ainda. Maribel tinha entrado em estado catatônico, não reagia a estímulo nenhum e foi submetida a eletroconvulsoterapia (também chamado de eletrochoque), que consiste em dar uma poderosa descarga elétrica no cérebro do paciente. Naquela época esse tratamento era feito sem anestesia ou analgesia, e a imagem daquele corpo frágil se contorcendo com a poderosa descarga elétrica foi impressionante, algo que nunca mais quisemos presenciar (atualmente esse tipo de tratamento é praticado em condições totalmente diferentes, muito mais humanizado, com anestesia geral e monitoramento rigoroso).
Acredito que esse episódio fez com que começasse a respeitar e me interessar pelos sintomas emocionais e alterações do sistema nervoso, percebi quanto essas doenças podem ser incapacitantes e que se em alguns casos não diminuem a expectativa de vida do paciente certamente diminuem muito a sua qualidade de vida.
A nossa saúde mental pode ser afetada significativamente por episódios ou circunstancias que duram apenas segundos ou minutos, uma perda familiar, perda do emprego, decepção amorosa, etc.. Daí a importância de estarmos atentos a nossas emoções, sentimentos e pensamentos; a perda de nossa saúde mental diminui muito nossa qualidade de vida.
Nosso cérebro, desde o nascimento até a morte, está em constante mudança, lembremos que a mielinização completa do sistema nervoso central acontece no começo da quarta década da vida e sabemos também que após a quinta década começa uma lenta e progressiva perda de células nervosas, que na grande maioria das pessoas não provocam sintomas significativos além das alterações próprias da velhice.
Um relatório da OMS sobre saúde mental publicado em 2017 dava conta que Brasil liderava na prevalência de transtornos ansiosos no continente americano com um 9,3% da população afetada (18,6 milhões de habitantes) e que os transtornos depressivos afetaram 5,8% da população (11,5 milhões de habitantes).
Pesquisa do Instituto Ipsos (abril, 2021) mostra que 53% dos brasileiros declararam que seu bem-estar mental piorou um pouco o muito no último ano. A percepção é que a saúde mental das pessoas tem piorado em tempos de pandemia em consequência de alguns fatores como o isolamento social, medo de contágio, perda de familiares e amigos, perda de emprego e renda e também em consequência da própria Covid-19 e suas sequelas – sabemos que ao menos 10% dos acometidos pela Covid-19 tem sequelas como depressão, ansiedade, pânico e insônia.
Dados fornecidos pela plataforma Google indicam que houve um 98% nas buscas dos brasileiros relacionadas ao tema saúde mental, pode ser que esse aumento de interesse no tema provocado na pandemia seja um divisor de águas para que num futuro pós-pandemia as pessoas continuem a privilegiar também sua saúde mental. Preservar sua sanidade mental significa em muitos casos mudar suas prioridades e objetivos de vida, mudar suas rotinas e dedicar mais tempo para sua família, ter uma boa qualidade do sono, realizar atividades físicas e de lazer.
Para nosso azar vivemos tempos em que parece que toda e qualquer disfunção deve ser tratada de forma medicamentosa, com certeza esse é um grande erro, estudos indicam que grande parte da população usa medicamentos psicotrópicos sem necessidade, enquanto tem muitas pessoas com transtorno mental que não estão sendo medicados ou estão submedicadas e portanto não obtém os benefícios que existem para diminuir seus males.
A psicofarmacologia tem uma história longa e, por incrível que pareça, muitos fármacos precursores e que apareceram na década de 1950 ainda são usados até o presente, ao mesmo tempo nas últimas décadas têm havido avanços significativos com aparecimento de medicamentos com menos efeitos colaterais, mas devemos lembrar que jamais deveríamos usar psicotrópicos sem a prescrição e orientação de um médico, a automedicação desta categoria de medicamentos geralmente é muito perniciosa e provoca dependência.
O premiado escritor Andrew Solomon, escreveu em 2012 um magnífico livro titulado “Longe da Árvore”, nele reivindica que nossa sociedade deve ser muito mais inclusiva e solidária com nossos semelhantes portadores de algum tipo de disfunção ou deficiência, ele cita por exemplo os autistas, surdos, síndrome de Down, deficiência mental, etc.
Temos muito a aprender com uma maior empatia para com os que ele chama metaforicamente “frutos que caíram longe da árvore”. Acredito que devemos incluir também como parte desses “frutos” aos portadores de transtornos mentais, temos a responsabilidade como sociedade e como pessoas de mudar nossa atitude em relação a eles sendo mais inclusivos, mais tolerantes, mais empáticos. Mais acolhimento ao doente mental significa menos medicamento.