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Ciência enfrenta desafio para conter avanço de doenças mentais na velhice

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Esse parágrafo, um dos mais conhecidos da literatura mundial, é a frase inicial do romance “Cem Anos de Solidão”, obra do premiado escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez. Gabo, como era seu apelido, nascido em 1827, faleceu de causas infecciosas aos 87 anos de idade e quis o destino que uma das mentes mais brilhantes e criativas dos últimos 100 anos fosse acometida nos seus últimos anos por um quadro demencial do tipo Alzheimer.

A doença de Alzheimer é o tipo mais comum de demência e se caracteriza pela perda progressiva da memória e de outras funções mentais. Sua incidência tem aumentado significativamente com o aumento progressivo da expectativa de vida nas últimas décadas, e acomete ao redor de 5 % das pessoas na década dos 60 anos e pode chegar a 20% das pessoas na década dos 80 anos. Calcula-se que existam no mundo 36 milhões de pessoas portadoras de DA e, para o ano de 2050, esse número pode chegar a 115 milhões de afetados.

Infelizmente, os investimentos em pesquisas sobre as doenças degenerativas do cérebro têm diminuído nos últimos anos, alguns laboratórios farmacêuticos encerraram seu trabalho para o desenvolvimento de novos fármacos para tratar o Alzheimer. Mesmo assim vários estudos mostram alguns avanços significativos que poderão ser de grande utilidade como ferramentas de diagnóstico e tratamento nos próximos anos.

Na área de diagnóstico muitos trabalhos mostram resultados promissores com a detecção de “biomarcadores” da doença de Alzheimer, seja no sangue, no líquido cefalorraquidiano, no PET-Scan (um tipo de tomografia funcional) e até na saliva, esses biomarcadores correspondem a proteínas que principalmente se acumulam nos astrócitos (tipo de célula do sistema nervoso) dos pacientes com a doença de Alzheimer,.É muito provável que nos próximos anos este método diagnóstico esteja incorporado à prática clínica com a vantagem de poder fazer diagnóstico na fase inicial da doença.

Referente ao tratamento, uma droga da categoria dos anticorpos monoclonais (anticorpos com uma função específica, neste caso destruir a proteína beta amiloide que se acumula nos neurônios dos afetados pela doença de Alzheimer), chamada Aducanumab encontra-se em fase de aprovação pela Agência Europeia de Medicamentos e está sendo também avaliada pela FDA americana. Este tipo de medicamento parece ser eficaz apenas se iniciado nas fases iniciais da doença e por isso a importância do diagnóstico precoce.

Outra área de muito interesse é a descoberta do importante papel da microbiota intestinal (trilhões de microrganismos que habitam nosso aparelho digestivo) em relação ao nosso sistema nervoso, imune e endocrinológico. Existe um “eixo microbiota-intestino-cérebro” cuja disfunção parece ser importante para o aparecimento dos sintomas de doença de Alzheimer. Conhecer seu mecanismo exato poderá ajudar na prevenção ou no tratamento da doença com o uso de probióticos.

É cada vez mais frequente o número de publicações que reportam a piora importante dos sintomas demenciais em pacientes com DA que sofreram Covid-19 e também o aparecimento de novos casos de DA semanas após a Covid-19. Acreditamos que muitos destes pacientes tinham apenas sintomas iniciais de Doença de Alzheimer (não diagnosticada ainda) que mostraram uma aceleração após o acometimento pelo Sars Cov2, vírus que reconhecidamente ataca também o sistema nervoso.

É uma grande ironia do destino que mentes brilhantes como a de Gabriel Garcia Marquez sejam destruídas por uma doença degenerativa. Lembremos que até o século XIX praticamente ninguém morria com demências degenerativas porque a expectativa de vida era inferior aos 35 anos, e com certeza a ciência tem esse grande desafio nos próximos anos: devolver ao ser humano a dignidade de poder viver seus últimos momentos de vida em pleno uso das suas faculdades mentais.