Em defesa da ciência
Tenho acompanhado no tempo livre as oitivas da CPI da Covid-19 no Senado, e observo com surpresa como boa parte dos debates tem se centrado sobre a eficácia ou não da Cloroquina e Hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. Este tema não é mais motivo de enfrentamento por nenhuma entidade de controle de medicamentos do primeiro mundo, incluindo aí a competente Anvisa.
Todos os estudos randomizados, duplos cegos com grupo controle e número significativo de pacientes publicados em revistas médicas de alto prestígio já mostraram que não existe eficácia desses medicamentos em nenhuma fase da doença. Vemos inúmeros parlamentares, a maioria deles de formação acadêmica totalmente alheia às ciências da saúde, defenderem estas drogas com total convicção e veemência, argumentando que conseguiram através das suas redes sociais informação totalmente verídica sobre os efeitos miraculosos de um antiparasitário para o tratamento de uma doença viral.
Sabemos que essas pessoas, de forma intencional ou não, estão ignorando a ciência e o método científico. Os debates são uma amostra real do chamado Efeito Dunning-Kruger, descrito em 1999 pelos psicólogos Justin Kruger e David Dunning. O efeito descreve um “engano” cognitivo: as pessoas incompetentes superestimam suas capacidades enquanto as pessoas altamente competentes e preparadas têm tendência a subestimar-se (quem realmente tem muito conhecimento sobre determinado assunto está realmente capacitado para saber que existe ainda muito por conhecer, daí a humildade).
A ciência como um todo e individualmente em qualquer das suas áreas está não somente habituada às controvérsias, quanto se nutre e aproveita delas. É absolutamente normal que todo e qualquer avanço científico, qualquer nova descoberta seja questionada por outros pesquisadores que trabalham nessa área. Todas as controvérsias sempre foram e serão resolvidas na mesma seara: a experimentação e observação rigorosa aplicando justamente o chamado método científico. Devemos aclarar também que os embates e discordâncias entre cientistas se limitam apenas ao assunto em questão. Os cientistas frequentam os mesmos congressos, se respeitam mutuamente e não poucas vezes compartilham experiências e trocas de informações, hoje em dia é muito raro encontrar rivalidades entre cientistas que cheguem ao nível pessoal.
Ao longo da história tem havido centenas de controvérsias científicas, muitas delas criando épicas rivalidades entre seus protagonistas. Se nos primórdios da ciência figuras como Leonardo da Vinci, Nicolás Copérnico , Giordano Bruno e Galileu Galilei foram terrivelmente combatidos pela própria Igreja Católica, neste breve artigo trataremos sobre as controvérsias entre cientistas da mesma área do conhecimento e citaremos algumas que pela sua importância passaram para a história.
Talvez a controvérsia científica mais interessante na história da ciência tenha sido a que se origina com o lançamento desse livro maravilhoso de Charles Darwin, A Origem das Espécies, no ano de 1858. Nele, lançava sua teoria que revolucionaria a biologia, a ciência e a compreensão da vida como um todo. Evidentemente que houve todo um grupo de cientistas liderados pelo anatomista britânico Richard Owens que, com muito afinco e pouco sucesso, tentaram diminuir e desprestigiar as evidências do farto material de amostras biológicas e geológicas que Darwin recolheria ao longo dos seis anos que durou sua viagem pela América do Sul a bordo do navio Beagle.
Rebater a teoria da seleção natural enunciada num livro que Darwin demorou 22 anos para escrever e publicar tornou-se uma tarefa impossível. Já em meados da década de 1860, Darwin era conhecido no mundo todo como o “famoso cientista”. Owens foi esquecido e hoje em dia seu nome somente é lembrado quando se fala da obra desse gênio que foi Charles Darwin.
A segunda metade do século XIX vivenciou a rivalidade científica entre Thomas Edison e Nikolas Tesla. Edison defendia a corrente continua como forma de eletricidade enquanto Tesla preconizava o uso da corrente alterna, embora no inicio da disputa os motores de corrente contínua tivessem tomado a dianteira, posteriormente as grandes vantagens oferecidas pelas características da corrente alterna (que pode ser reduzida com o uso de transformadores e transportada a grandes distâncias a diferença da corrente contínua) que predominou e começou a ser utilizada amplamente nos geradores e redes de energia para uso doméstico e industrial no mundo todo.
Embora Edison tenha sido um inventor profícuo tendo registrado o incrível número de 1069 patentes durante sua vida (sendo sua invenção mais famosa o gramofone), no enfrentamento contra Tesla na chamada “batalha das correntes” ele perdeu, não sem antes ter feito parte de um lobby para barrar a óbvia superioridade do uso da corrente alterna pela praticidade e custos.
Quis o destino que Tesla, um verdadeiro gênio da ciência e tecnologia, não tivesse habilidades comerciais, e ganhou pouco dinheiro pelo seu invento e morreu pobre, desprestigiado e esquecido em 1943 aos 87 anos.
Outra dos grandes enfrentamentos científicos foi a corrida pelo descobrimento da estrutura do DNA, os ganhadores James Watson e Francis Crick que publicaram sua descoberta na revista Nature em 1953, foram agraciados com o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1962, seus concorrentes foram a dupla formada por Rosalind Franklin e Maurice Wilkins, além do grupo liderado pelo famoso químico Linnus Pauling (Prêmio Nobel de Química em 1954).
Watson e Crick parecem ter ganho esse desafio também porque obtiveram informações privilegiadas das imagens que Rosalind Franklin já tinha sobre o DNA, além de que as pesquisas de Franklin e Wilkins marchavam lentamente devido ao mau relacionamento entre ambos. O descobrimento da estrutura química do DNA inicia a ascensão meteórica da genética em todas suas áreas.
Há centenas de controvérsias científicas que alavancaram o avanço da ciência trazendo benefícios para a humanidade. Não nos enganemos, no momento atual há uma tentativa de criar uma narrativa de “controvérsia científica” em relação ao chamado tratamento precoce da Covid-19.
A comunidade científica internacional é tácita ao afirmar que não existe até o momento nenhum medicamento antiviral para combater a Covid-19. Chega a ser incompreensível que ainda gastemos tempo e dinheiro discutindo sobre isso, é provável que o próprio Charles Darwin tenha dado uma explicação para esse tipo de teimosia quando afirmou: “o homem ainda carrega no corpo a marca indelével de sua origem modesta”.
Ao longo da história a ciência sempre conviveu com polêmicas e rivalidades, sempre saiu mais forte e vitoriosa desses embates e na crise sanitária atual trabalhou intensamente para proporcionar a humanidade uma solução para a pandemia em forma de vacina.