Médicos, farmácias e indústria farmacêutica (parte 2)
A outra reportagem de Amanda Rossi denuncia médicos que forçam o paciente a comprar medicamento de referência sem dar opção de usar o genérico ou similar.
Como expliquei anteriormente, em teoria o medicamento genérico tem a mesma eficácia que o de referência, portanto essa prática não se justifica.
Podem existir sim algumas circunstâncias em que todo zelo é importante.
Logo após o lançamento dos genéricos lembro do caso de um paciente com uma meningite grave que não estava respondendo ao antibiótico, ao conferir constatei que era um genérico importado, assim que trocamos para o medicamento de referência a infecção foi controlada.
Sim, em situações clínicas complicadas e se o paciente tem condições financeiras prefiro o uso do medicamento de referência, é uma conduta pessoal minha e de muitos colegas.
Há muitos laboratórios que fabricam tanto o medicamento referência quanto o genérico, nesses casos os dois são absolutamente iguais, então uma boa sugestão é usar o genérico do mesmo fabricante do original.
Tudo o que implica interesses econômicos ou comerciais tem risco de conflitos.
É uma realidade que durante muito tempo grandes laboratórios aproveitavam as leis menos rigorosas de países pobres para fazer experiências com novos medicamentos, é uma conduta criminosa que deve ser combatida e punida.
Crises sanitárias podem ser um excelente cenário para aumentar lucros.
Logo após o início da recente pandemia, apareceu a informação de que a cloroquina, um fármaco usado no tratamento da malária e algumas doenças autoimunes seria de grande eficácia tanto para tratar como para evitar a Covid-19.
Essas informações não tinham nenhuma evidência científica e quem iniciou os boatos, o médico francês Didier Raoult reconheceu posteriormente que fraudou os resultados do estudo que publicou.
Milhões de pessoas usaram a cloroquina achando que estavam protegidos ou que seria benéfico para tratar a doença.
Acontece que além de ser totalmente ineficaz contra a Covid-19, a cloroquina tem sérios efeitos colaterais.
Apesar disso, os laboratórios produtores do medicamento ou as entidades que representam o setor farmacêutico não se manifestaram, mesmo conhecendo a ausência de evidências científicas da sua eficácia.
Somente em março de 2021 a farmacêutica Apsen divulgou um comunicado anunciando que não havia comprovação da eficácia da cloroquina contra Covid 19.
Recentemente, um estudo científico que analisou dados de 6 países (USA, França, Bélgica, Espanha, Turquia e Itália) durante 4 meses do ano de 2020 mostrou que houve 17 mil mortes atribuídas diretamente à cloroquina usada em pacientes com Covid-19.
Significa que num grupo equivalente que não tomou cloroquina houve 17 mil mortes a menos. Isso num período de apenas 4 meses.
Os países que mais usaram cloroquina durante a pandemia, como política de saúde pública foram Índia, Brasil e USA, lembrando que Índia e USA são grandes produtores do medicamento.
O Brasil é o quinto país que mais consome medicamentos no mundo, atrás de USA, China, Japão e Alemanha.
É um grande mercado fortemente disputado pelos laboratórios farmacêuticos, a grande maioria deles gastam muito mais com marketing do que com pesquisas de novos fármacos.
Tanto médicos como farmácias são assediadas pelos laboratórios e muitos aceitam as vantagens oferecidas.
Pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo mostrou que 93% dos médicos paulistas recebem brindes, convites para almoços, jantares, eventos culturais, congressos médicos e honorários por aulas e palestras.
Quase 80% dos médicos disseram conhecer colegas que aceitam esses benefícios, porém apenas 37% admitem que eles próprios já aceitaram os mesmos.
É necessário solucionar este conflito de interesses que tem o potencial de prejudicar o paciente, justamente quem paga pelos medicamentos.
Prescrever um medicamento visando obter vantagens indevidas é totalmente proibido pelo código de ética médica.
Uma das grandes preocupações atuais tanto para a população como para os governos são os custos cada vez maiores dos novos medicamentos.
Quando se trata de medicamentos biológicos como anticorpos ou terapias gênicas o custo de cada tratamento pode superar o milhão de dólares, na prática, esses tratamentos estão ao alcance de poucos.
Considero que o setor de medicamentos deve ser considerado como estratégico para as políticas públicas.
Nada existe de mais estratégico para um país que a saúde da sua população, dela depende a capacidade produtiva.
Acontece com frequência que pesquisas de ponta desenvolvidas com dinheiro público em vários países do mundo servem de base para que grandes laboratórios farmacêuticos desenvolvam novos fármacos de custo altíssimo.
Núcleos de pesquisa das grandes universidades brasileiras poderiam estar vinculados a laboratórios farmacêuticos públicos ou de parceria público-privada.
Dessa forma, medicamentos inovadores poderiam ser acessíveis para a maioria da população e o Brasil teria condições de vender fármacos de última geração e alto valor agregado.
Não há dúvidas que o elo mais fraco dessa cadeia “indústria farmacêutica, farmácia, médico e paciente” é o paciente.
E por causa disso é responsabilidade fundamental do médico defender as necessidades do paciente na hora de prescrever um medicamento.
Além de escolher o medicamento de eficácia comprovada há também a necessidade de considerar as condições financeiras do paciente.
Prescrever um medicamento que o paciente não tem condições de comprar não terá utilidade alguma.
A relação médico-paciente é um contrato social fundamentado na confiança e na ética, o objetivo principal dessa relação é a melhora da saúde do paciente.
Não existe nenhuma outra profissão à qual as pessoas entreguem seus corpos e sua própria vida em busca da cura, esse privilégio médico carrega portanto uma grande responsabilidade.
Perante pressões da indústria farmacêutica não há dúvidas que é dever do médico defender sempre os interesses do paciente.