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O que significa medicina baseada em evidências?

Com certa frequência atendo pacientes com as mais variadas queixas que estão se medicando com medicamentos “naturais”, e na maioria das vezes as cápsulas que tomam consistem numa combinação bastante criativa de uma série de extratos das mais diversas plantas, muitas vezes a fórmula mistura esses fitoterápicos com medicamentos sintéticos já bem conhecidos.

A crença disseminada de que os medicamentos naturais “se não fazem bem também não fazem mal” é totalmente errada. Em primeiro lugar, não tem lógica você fazer uso de um medicamento ou método terapêutico que não tenha comprovação científica da sua eficácia, em segundo lugar os fitoterápicos também têm efeitos colaterais, podem ter interações medicamentosas com outros medicamentos que você já toma e o que é pior, podem dar a falsa sensação de segurança de estar protegida e dessa forma descuidar o acompanhamento e o tratamento correto da doença que o atinge.

Até um século atrás era muito frequente o uso de elixires e extratos que pareciam ser miraculosos e que com toda certeza causavam muito mais dano que benefícios.

Nos Estados Unidos, o famoso Xarope da Dra. Winslow, lançado em 1849, foi campeão de vendas durante 80 anos. Esse xarope, que continha morfina e álcool certamente aliviava muitas dores, mas, ao mesmo tempo, provocou muitas mortes por overdose, intoxicações e dependência química com crises fatais de abstinência, só foi proibido em 1930.

Até finais da década dos 60 os chamados elixires paregóricos foram muito usados, geralmente continham uma concentração de álcool que superava o 40% e ópio, evidentemente eram medicamentos mais nocivos do que benéficos, embora o elixir paregórico exista até atualmente, sua formulação é bem diferente com quantidades pequenas de morfina.

Se não tivéssemos introduzido a metodologia científica para avaliar a eficácia dos medicamentos, com certeza ainda estaríamos nos enganando com supostos efeitos terapêuticos de uma série de extratos e chás que na verdade não têm comprovação científica alguma.

A partir da aplicação do método científico, no fim do século passado surge a Medicina Baseada em Evidências (MBE), os pioneiros de esta nova forma de resolver os problemas clínicos lançaram as bases da MBE no ano de 1992, eram pesquisadores da Universidade McMaster do Canadá.

A Medicina Baseada em Evidências consiste num método que aplica o uso consciente e judicioso da melhor evidência clínica disponível ao tomar decisões sobre o tratamento de um paciente.

Na verdade a MBE tem revolucionado a prática da medicina e também o ensino médico ao introduzir a análise crítica dos ensaios clínicos para poder decidir a real qualidade e a consequente importância de uma publicação científica.

Para isso é necessário, além do conhecimento de metodologia científica, conhecimentos de epidemiologia clínica e estatística, até poucas décadas atrás estas matérias eram assuntos restritos apenas à pós-graduação.

Podemos afirmar que se o médico recém-formado não tiver formação nestas áreas durante seu curso universitário não terá o preparo necessário para poder separar o joio do trigo quando ler um artigo científico.
Afirmo isto porque até umas décadas atrás a grande maioria dos médicos não tinha esse preparo e esse discernimento, eram épocas em que estávamos sempre à caça das publicações médicas mais recentes e aplicávamos cegamente aquilo que aparecia como novo e eficaz sem adotar nenhum critério de análise o julgamento da metodologia aplicada em aquele estudo.

Hoje em dia, com os avanços da informática e da internet, o acesso à informação científica está muito facilitado, o grande problema é que devido ao grande volume de publicações há a necessidade imperiosa de selecionar apenas os estudos de boa qualidade, quer dizer, randomizados, duplo-cegos com grupo controle (termos que explicamos num artigo anterior).

A informação é tão abundante que para se manter atualizado a maioria dos especialistas precisariam ler pelo menos cinco artigos recentes por dia. Lembremos que a cada mês são incluídos no Medline (plataforma que publica as referências bibliográficas dos artigos médicos) ao redor de cem mil novos artigos. Daí a extrema importância da MBE, é uma ferramenta que bem aplicada pelos médicos permite que se mantenha atualizado com mais facilidade.

Já existem evidências científicas que pacientes tratados de acordo com protocolos baseados em evidências tem melhores resultados clínicos que os pacientes tratados seguindo as diretrizes de consenso das sociedades médicas (Chamados em inglês de Guidelines, lembrando que existem também diretrizes terapêuticas formatadas a partir da MBE).

A verdade é que não é fácil interpretar evidências científicas, se necessita uma preparação específica sobre esse assunto, sendo assim, é fácil, por exemplo, entender a polêmica criada sobre tratamento precoce para Covid-19.

Quem aplica os conceitos de Medicina Baseada em Evidências sabe que praticamente todas as substâncias dos chamados kit-covid tiveram sua ineficácia comprovada por vários estudos randomizados, ao mesmo tempo existem uma série de estudos de péssima metodologia (totalmente enviesados) afirmando que essas substâncias são eficazes contra Covid-19, médicos que não fazem análise crítica dessas publicações podem se tornar adeptos dessas recomendações.

Sem conhecimento adequado é fácil entrar na cascata de fake news, como resultado a falsa sensação de segurança dos usuários desses medicamentos ajudou para disseminar ainda mais a epidemia. Não é difícil saber quem está com a razão, a ciência nunca esteve dividida sobre este assunto.

Já dizia o poeta britânico Alexander Pope: “um pouco de conhecimento é uma coisa perigosa”, frase completada séculos depois por Albert Einstein: “pouco conhecimento é uma coisa perigosa, muito conhecimento também”.