Os pecados da memória (Parte 2)
Nas últimas décadas houve um grande avanço na compreensão dos mecanismos da memória e do funcionamento do cérebro em geral.
O aumento da expectativa de vida da população que em países do primeiro mundo já supera os 80 anos tem ao mesmo tempo aumentado a incidência de casos de demência, principalmente a Doença de Alzheimer, quase 30% dos idosos com idade maior a 80 anos são afetados por esta enfermidade.
Justamente tentar compreender como funciona a memória pode nos ajudar a entender melhor as demências e encontrar estratégias de prevenção e tratamento.
Não há dúvidas que é nosso arquivo de memórias que faz com que cada um de nós seja o que é. Esse arquivo de memórias é que nos converte em indivíduos.
Todos os que já tiveram oportunidade de cuidar de pacientes com demência avançada sabem bem o significado da perda de memória associada com a incapacidade de gravar novas experiências. Na prática estamos cuidando de pessoas que não são mais o que sempre foram.
Além do “pecado” de distorção da memória já descrito podemos citar outros como o da “distração”, é talvez o mais frequente e também o mais irritante já que atrapalha muito nossa vida.
Uma das principais causas dos erros de distração é o da “atenção dividida”, quer dizer estar realizando mais de uma tarefa ao mesmo tempo, algo bastante comum na época em que vivemos. A atenção dividida não permite que analisemos os detalhes que são necessários para a lembrança posterior de uma experiência, assim por exemplo é comum que preocupado com um assunto, como uma reunião importante, uma pessoa não lembre onde deixou a chave do seu carro, um erro de distração muito frequente.
Já sabemos que quando a atenção é dividida a região inferior do lobo frontal esquerdo é impedida de atuar normalmente e impede a memorização de forma adequada.
Então para evitar os erros de distração a melhor estratégia é realizar uma atividade de cada vez, focando sua atenção apenas nessa atividade.
Outro erro frequente da memória consiste nos conhecidos bloqueios que as pessoas costumam chamar de “branco”, quase todos já tivemos brancos, simplesmente o que tínhamos que lembrar ou dizer desaparece da nossa mente.
Diferentemente das falhas de distração, no bloqueio o nome que você não consegue se lembrar está gravado na sua mente, existe uma pista ou associação que faria você lembrar do nome.
O bloqueio mais frequente é aquele que envolve o nome de pessoas, lembrando que em indivíduos com mais de 50 anos o esquecimento de nomes de pessoas conhecidas faz parte do chamado deterioro cognitivo relacionado à idade, condição que não é considerada doença.
Existem casos extremos de não recordação de nomes de pessoas, geralmente associados a lesão cerebral de uma área chamada polo temporal esquerdo, essa condição é chamada de “anomia de nome próprio”. Esses pacientes conhecem uma série de características das pessoas (amigos, parentes), porém não conseguem dizer seu nome.
Ter um branco e não conseguir falar um nome que parece estar “na ponta da língua” é bastante embaraçoso, mas a memória pode nos enganar com outras ciladas como a da “sugestionabilidade”, consiste na tendência que temos a incorporar informações enganadoras de fontes externas (pessoas, material escrito, imagens) a recordações pessoais.
A sugestionabilidade faz com que técnicas terapêuticas sugestivas possam ajudar a criar falsas lembranças assim como perguntas tendenciosas podem levar a testemunhas fazerem identificações erradas.
A disseminação de notícias falsas muito comum nos tempos atuais associada à tendência que temos para a sugestionabilidade ajuda a explicar o convencimento genuíno de muitas pessoas sobre fatos que não são reais ou nunca aconteceram.
Provavelmente nos próximos anos teremos que lidar com uma avalanche de casos envolvendo a queixa de perda de memória, já que um estudo recente da Universidade de Cambridge mostra que mais de 20% dos pacientes que tiveram Covid-19 tem deterioração da sua memória equivalente ao envelhecimento natural de 20 anos de vida, isto apenas seis a dez meses após a doença viral.
Assim, um paciente de 50 anos começa a apresentar desempenho de memória equivalente a uma pessoa de 70 anos. Na prática significa uma perda de 10 pontos no QI (quociente de inteligência).
Na prática clínica há muitos relatos de deterioração rápida das funções cognitivas em idosos com Doença de Alzheimer que tiveram Covid-19.
Diz o neurocientista António Damásio que quando a mente encontra o self surge a consciência, não devemos esquecer que a consciência se nutre de memórias. Cuide bem da sua saúde física e mental.