Sobre vacinas, morcegos e ratos
Há muito do que falar ao se tratar de temas relacionados à saúde, porém na situação atual é quase impossível deixar de abordar situações relacionadas à pandemia que atravessamos. A crise sanitária continua assolando o Brasil com número elevado de casos e mortes diárias. Apesar de que já se passaram mais de 480 dias desde o primeiro caso de Covid-19 reportado no Brasil, ainda não temos uma diretriz nacional única, coerente e consensual, baseada em conhecimentos já bem estabelecidos para orientar a nossa população.
Vejo na prática diária, no contato com pacientes muita desorientação e desinformação, escuto com alguma frequência pessoas relatando que não vão se vacinar, incluindo aqui pessoas idosas ou com comorbidades. Escuto também pessoas relatando que não vão tomar a segunda dose da vacina (e o número de pessoas que está com a segunda dose em atraso é alto e está em aumento no Brasil).
Vejo também muitas pessoas que continuam a não acreditar que estamos numa pandemia e que ainda é necessário ter uma série de cuidados, não somente para proteção individual e sim também como proteção coletiva. Mais do que nunca temos a obrigação de nos preocupar com o coletivo, com nossos semelhantes. Há muita gente querendo escolher a vacina, essa atitude até seria compreensível se houvesse sobreoferta de vacinas, não é o caso, temos urgência em vacinar o mais rápido possível e para este efeito todas as vacinas aprovadas pela Anvisa são confiáveis.
A lentidão na vacinação e a recusa de parcela da população para receber a vacina certamente vão prolongar a pandemia no Brasil. No mês passado o imperial College estimava que para atingir a meta de 70% de vacinados com duas doses o Brasil demoraria 13 meses no ritmo de vacinação atual, nos últimos 30 dias não vimos nenhuma melhora na velocidade da vacinação a nível nacional. Devemos lembrar que só atingiremos níveis de imunidade coletiva ao alcançar 70 a 80 % de imunizados com duas doses, antes disso devemos continuar com todos os cuidados possíveis para dificultar a propagação do vírus.
Infelizmente continuamos a ver pessoas que se negam a usar máscaras, que continuam a fazer aglomerações e parecem viver num mundo paralelo, onde não existe nenhuma crise sanitária. Não tenho dúvidas que esse tipo de comportamento alheio à realidade muito contribui para o aumento da disseminação do vírus, aumento do número de casos e consequentemente do número de mortes.
As doenças infecciosas estão sempre nos ameaçando, seja de forma esporádica, endêmica, epidêmica ou mais raramente pandêmica. Todos os que já somamos mais de cinco décadas de vida com certeza já fomos acometidos por pelo menos uma das doenças infecciosas consideradas endêmicas ou epidêmicas.
Ainda criança lembro ter sido vítima da varíola, doença com uma taxa de mortalidade superior a 25%, sua extinção (1980) foi possível única e exclusivamente por causa da vacinação e logicamente ao pai das vacinas, Edward Jenner. Lembrando uma doença infecciosa que é endémica até hoje, a tuberculose, podemos dizer que até o fim do século XX a maioria dos países do chamado terceiro mundo dispunha de hospitais e sanatórios dedicados ao atendimento exclusivo dos afetados pela tuberculose, doença bacteriana que, embora tenha preferência por atingir o aparelho respiratório, tem a capacidade de atingir praticamente todos os órgãos do corpo humano.
No Brasil ainda temos ao redor de 70 mil novos casos de tuberculose todos ao anos, estamos longe de ter conseguido o controle desta doença para a qual existe vacinação e tratamento medicamentoso há muitas décadas. Quis a casualidade que, ainda estudante de medicina, fazendo estágio num hospital de uma cidade andina chamada Alausi, estivesse presente e atuasse durante um surto epidêmico de uma doença que considerava extinta, a famosa “peste bubônica”.
Foi em 1983, 65 casos e três mortes num período de 30 dias. Foi a rápida intervenção do departamento de saúde pública que evitou a disseminação e uma mortalidade muito superior. Esse é o tamanho da importância dos epidemiologistas e especialistas em saúde pública. Como se sabe, a bactéria que provoca esta doença, a yersinia pestis, se hospeda em pulgas que por sua vez infestam os ratos, neste caso ratos silvestres.
A peste que ficou famosa pela epidemia que dizimou a população europeia no século XIV e depois teve pelo menos mais dois grandes surtos epidêmicos provavelmente é a epidemia que mais matou pessoas na história da humanidade, para nosso pesar essa praga ainda ameaça as populações, entre 2010 e 2015 a OMS relatou 3248 casos e 584 mortes pela peste bubônica, doença associada aos ratos, e ratos é o que não faltam, tanto nos ambientes urbanos quanto rurais.
Como sabemos, a epidemia de Covid-19 não é a primeira provocada por um coronavírus, a primeira acontecida em 2003, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) se inicia no Vietnam (Hanói) e duas semanas após já apareceram casos em Toronto. Só foi possível que não se transformasse em pandemia porque foi realizado o cerco epidemiológico a todos os contatos do paciente inicial que esteve hospedado no nono andar do hotel Metropole de Hong Kong e foi a partir daí que a infecção se disseminou a vários países. Houve a sorte que esse coronavírus que provavelmente provinha de um pequeno mamífero asiático chamado civeta e não dos morcegos, como parece ser o caso do Sars Cov 2, não tivesse uma grande capacidade de mutação.
O SARS acabou com 8098 casos em 26 países e 774 mortes, números importantes, porém pequenos comparados à pandemia atual. Infelizmente o mundo não aprendeu essa lição e o novo coronavírus aproveitou e continua aproveitando a nossa inércia. Caro leitor, não duvide em tomar a vacina disponível assim que estiver à sua disposição, a sociedade como um todo agradece.