Editorial: O crime de opinião
Diz-se que toda revolução precisa de um corpo. Em 1914, o episódio que ficou conhecido como Atentado de Sarajevo, o qual vitimou o arquiduque Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi o marco para o início da Primeira Guerra Mundial.
Posteriormente, no mundo inteiro, há inúmeros exemplos de revoltas que foram desencadeadas após assassinatos. Historicamente, a morte é um estopim para que aconteça uma guerra ou uma revolução.
Nesta semana, o empresário Luciano Hang foi alvo de operação da Polícia Federal, autorizada pelo STF, e teve seu celular apreendido e redes sociais bloqueadas, por estar em um grupo do Whatsapp, junto a outros empresários, e supostamente apoiar um golpe de estado após as eleições de outubro.
Não se trata, como nos exemplos históricos, de um assassinato, mas sim da tentativa de calar as ideias, sepultar as opiniões.
Esta não é a primeira vez que Hang é alvo da ira do poder Judiciário. Em 2020, teve seus dois celulares apreendidos e redes sociais – com milhões de seguidores -, em operação que o investigava por supostamente financiar a disseminação de notícias falsas.
Essa investigação, assim como a atual, permanece inconclusiva, ou seja, não há formação de culpa ou declaração de absolvição do empresário, mesmo após dois anos de diligências. Mas os danos causados foram permanentes.
Como sabemos, Luciano é um empresário dos mais próximos ao presidente Jair Bolsonaro, ativista político que tem nas suas redes sociais o principal meio de contato com seu público e, pela segunda vez em dois anos, tem o acesso a elas cortado por decisão judicial.
Essa ação desencadeada pelo STF, conforme já dito, tem como motivação o suposto apoio de empresários a um golpe de estado. Na verdade, o argumento pode se transformar de uma conversa de boteco em teoria conspiratória.
Na visão dos investigadores, um grupo de empresários reunidos virtualmente pelo Whatsapp teria o poder de mobilizar as forças armadas, e toda a sua cadeia de comando e subordinados, para perpetuar um golpe contra a democracia em um país de dimensões continentais. O STF, ao permitir a operação baseada nesses argumentos, assume um poder absolutista de interpretar um fato como verdade ou mentira.
E, sem julgar antecipadamente, se as denúncias serão ou não comprovadas, o fato em si traz uma série de dúvidas à população, sobre as motivações de se gerar uma investigação a partir de conversas privadas em um grupo do Whatsapp.
O STF põe em xeque o conceito consolidado do que é público e do que é privado, e caminha para a criminalização das opiniões
Tratou-se de uma operação gestada de forma isolada, que causou bastante estranheza, sobretudo pela agilidade, incomum no Judiciário brasileiro, acostumado a contar os prazos em meses ou anos, não em dias, como foi o caso recente.
Mas o que mais gera debate é que, ao desencadear busca e apreensão por causa de comentários críticos feitos no Whatsapp, o STF põe em xeque o conceito consolidado do que é público e do que é privado, e caminha para a criminalização das opiniões. Fica claro que a linha que até então estava traçada entre esfera pública e privada não existe mais.
A reação da sociedade, no entanto, já começou. Nesta quarta-feira, 91 entidades catarinenses, entre elas várias de Brusque, divulgaram manifesto em defesa da liberdade de opinião.
“Querer amordaçá-los, impedi-los de influir no debate político ou até mesmo de externar opiniões é um perigosíssimo aceno a regimes em que o delito de pensamento é um ato que pode acarretar a perda da própria vida”, diz trecho contundente do documento.
Ainda não sabemos se o fato pode ser o estopim de uma revolta, nem a extensão que ela vai ter, mas está claro que a atitude do STF, ao transformar queixas contra o próprio tribunal em ameaça à Democracia não passou despercebida pela população, e poderá ter consequências ainda maiores, pois mexeu com um dos pilares do estado democrático, a liberdade de expressão.