Editorial: Os caminhoneiros e os fiscais do Sarney
O Brasil parece que tem uma vocação natural de não aprender com as crises que passa. A manifestação dos caminhoneiros mais uma vez é didática neste sentido. Tanto o governo como a grande mídia parecem deslocados completamente dos fatos e das expectativas da população. Como já está claro para todos, a motivação dos caminhoneiros foi […]
O Brasil parece que tem uma vocação natural de não aprender com as crises que passa. A manifestação dos caminhoneiros mais uma vez é didática neste sentido. Tanto o governo como a grande mídia parecem deslocados completamente dos fatos e das expectativas da população.
Como já está claro para todos, a motivação dos caminhoneiros foi um movimento que nasceu a partir de uma insatisfação genuína, o aumento constante do óleo diesel. É um dos poucos casos da história em que a causa foi menor que o movimento.
Desta vez o WhatsApp foi o protagonista, permitindo uma comunicação rápida entre os manifestantes, sem intermediários, sem partidos, sem sindicatos, sem bandeiras.
Depois o movimento tomou outros rumos, com novos personagens e interesses que se infiltraram e tentaram desvirtuar as reivindicações, mas o joio foi facilmente separado do trigo.
A população aderiu de imediato ao clamor do movimento. No dia 29 de maio o Datafolha realizou uma pesquisa que apontava 87% dos brasileiros apoiavam a paralisação.
Com tanta pressão popular, o governo não teve outra escolha a não ser prometer atender o pleito (neste momento você pôde perceber como é fácil aumentar um tributo, mas como é quase impossível baixá-lo) e entre uma trapalhada e outra o governo finalmente consegue chegar nesta semana ao número mágico de R$ 0,46 de redução no diesel.
E o que parecia ser o fim, é o começo de mais um jeitinho, um improviso fadado ao fracasso.
O governo esquece que estamos num sistema de livre iniciativa, em que cada um pode vender pelo preço que lhe convém. Não há tabelamento de preços nem de diesel nem de frete. Isso lembra o desastroso Plano Cruzado do Sarney, que em 1986 usou deste expediente para conter a inflação.
O governo Temer segue o mesmo caminho, para o mesmo precipício. Criou um disque-denúncia para que os caminhoneiros delatem quais postos não estão reduzindo o preço do diesel conforme a sua determinação.
O governo não está disposto a perder sua boquinha e pelo que tudo indica vai continuar a seguir na contramão dos anseios e necessidades da sociedade, defendendo a todo custo os privilégios
Assim como no Plano Cruzado, o governo tenta iludir os manifestantes fingindo que são aliados, para que ajudem o governo a identificar os postos “inimigos”, mas logo os caminhoneiros que aderirem vão perceber que estão sendo tão enganados como foram os “Fiscais do Sarney”, na época.
Outra situação interessante é que passado o susto, o governo começa agora a caça às bruxas e para isso invoca a Lei de Segurança Nacional, cuja redação atual foi promulgada em 1983 durante a ditadura militar, no governo de João Figueiredo. O primeiro passo neste sentido é achar quem incitou a greve e, neste caso, até o empresário de Brusque, Luciano Hang, está sendo investigado.
A Polícia Federal, em outra frente, investiga empresários do setor de transporte pela prática de locaute. Isto até faria sentido num setor dominado por poucas empresas, que não é o caso do setor de transportes rodoviários.
As dez maiores transportadoras do Brasil juntas chegam a 0,57% do total da frota de caminhões, que hoje passa de 2 milhões em nosso país.
Somente 37 transportadoras estão sendo investigadas por locaute e mesmo que sejam culpadas, apresentam frotas insignificantes em relação ao tamanho continental da paralisação.
Por fim, outro instrumento utilizado para conter os bloqueios foram as multas aplicadas pela Polícia Rodoviária Federal, tanto para os caminhoneiros quanto para as empresas que participaram do movimento. Outra novela que está só começando e que ainda vai ser o centro de muitos questionamentos dada as circunstâncias que foram lavradas.
Mas se ao invés destes descompassos o governo quisesse resolver o problema poderia ouvir, por exemplo, o próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) que tem propostas muito interessantes, entre elas permitir que produtores de álcool vendam diretamente para postos, permitir que distribuidoras abram postos de combustível, extinguir a vedação a importação de combustível pelas distribuidoras e repensar a substituição tributária do ICMS e a tributação do combustível. Soluções mais lúcidas para aumentar a competitividade e reduzir, de fato, o preço dos combustíveis.
Mas o governo não está disposto a perder sua boquinha e pelo que tudo indica vai continuar a seguir na contramão dos anseios e necessidades da sociedade, defendendo a todo custo os privilégios, o gigantismo e ineficiência da máquina pública, recorrendo para isso a instrumentos bizarros e tão antiquados quanto tabelar preços num sistema de livre concorrência ou utilizar um expediente da ditadura para achar culpados ou ainda utilizar seu poder de polícia para multar e punir os envolvidos.
Não vai ser desta vez que o governo aprende com a crise.