Editorial: Por baixo dos panos
A música popular brasileira tem alguns exemplos de crítica feita, com graça e precisão, sobre os desvios do caráter nacional. Os mais velhos devem lembrar-se de Juca Chaves, cujo repertório ironizava alguns dos males da República. Num disco de 1960 estava a faixa “Caixinha, obrigado” canção que, a certa altura, dizia o seguinte: “A situação […]
A música popular brasileira tem alguns exemplos de crítica feita, com graça e precisão, sobre os desvios do caráter nacional. Os mais velhos devem lembrar-se de Juca Chaves, cujo repertório ironizava alguns dos males da República. Num disco de 1960 estava a faixa “Caixinha, obrigado” canção que, a certa altura, dizia o seguinte: “A situação do Brasil vai muito mal; Qualquer ladrão é patente nacional; Um policial, quase sempre, é uma ilusão; E a condução é artigo racionado. Porém, ladrão… isso tem pra todo o lado! Caixinha, obrigado!”
Na década seguinte, em 1978, a rainha do Xaxado, Marinês, lançou a música de Antônio Barros e Cecéu “Por debaixo dos panos”. A música ficou conhecida nacionalmente quando Ney Matogrosso, então no auge do sucesso, a incluiu num disco de 1982, numa versão dançante. E em 1998 estava na trilha sonora da novela da Globo, “Meu Bem Querer”, na voz dos autores. Diziam lá: “O que a gente faz (é por debaixo dos panos); Pra ninguém saber (é por debaixo dos panos); Se eu ganho mais (é por debaixo dos panos); Ou se vou perder (é por debaixo dos panos); É debaixo dos panos; Que a gente esconde tudo”.
Essas lembranças vêm a propósito da votação, esta semana, de uma peça legislativa conhecida pelo estranho nome de “Orçamento secreto”. Por que estranho? Ora, o que é feito com o dinheiro público, o dinheiro de todos, arrecadado por impostos de todo tipo não pode, nem de brincadeira, ficar secreto, fora do conhecimento e das vistas dos legítimos donos do dinheiro: nós.
O procurador e professor Fabrício Mota conseguiu sintetizar alguns conceitos importantes, num artigo publicado no site Consultor Jurídico, em 2018: “A política do segredo é incompatível com a consagração da vontade geral por meio da lei, debatida abertamente, como regra, em assembleias com livre acesso do povo. A necessidade de tornar visíveis as relações entre administração e cidadãos é decorrência do Estado de Direito, e nessa máxima se inspira o artigo 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de que ‘a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração’”.
O que é feito com o dinheiro público, o dinheiro de todos, arrecadado por impostos de todo tipo não pode, nem de brincadeira, ficar secreto
A Constituição brasileira de 1988 estabelece as bases para que se retirem os panos com que eventualmente alguém pretenda cobrir o que faz na vida pública ao manusear, usar ou roubar dinheiro público. E consolidou-se no país (e no mundo) a noção de que a conduta cotidiana dos órgãos públicos e os dados dela decorrentes, devem ser acessíveis ao público em geral. É a tal transparência, monstro que apavora e afugenta os seres que temem a luz do dia, não querem ser fiscalizados e odeiam que alguém veja o que gostariam de manter escondido.
Em toda campanha eleitoral os e as candidatos/as juram por tudo que é mais sagrado que não tentarão comprar apoios, que não se venderão, que não usarão o dinheiro que está no cofre dos impostos para pavimentar suas reeleições ou a aprovação de seus projetos. E que não aceitarão pagamentos escusos em troca de seus votos nos legislativos. E, uma vez assentados nos gabinetes em que o povo os colocou, esquecem-se dos compromissos, puxam a lona espessa do sigilo e da pouca vergonha e escondem-se ali embaixo fazendo coisas que não querem que ninguém saiba. Como se o eleitor fosse um tolo, fácil de ser engambelado. E, de fato, às vezes, é difícil acreditar que não seja.