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Em meio à luta contra os vícios e em busca de dignidade, pessoas em situação de rua relatam histórias em Brusque

No município, estima-se que entre 15 e 20 pessoas passam a noite na rua

Há dois anos vivendo na rua, o brusquense Sidnei José Crispim, de 41 anos, relata que é a dependência no álcool e outras drogas que o fez perder o vínculo familiar e o mantém nesta situação. “As decisões da minha vida me trouxeram para onde eu estou”, inicia.

Descalço, Sidnei faz entrevista aguardando o tênis secar no sol após andar por quatro dias debaixo de chuva. Ele conta que a mãe teve Alzheimer e que ele nasceu com coágulo na cabeça. Ao longo da vida, o brusquense sofreu percalços de saúde: conta com próteses no quadril e relata ter uma osteonecrose no fêmur. A tristeza por conta da saúde debilitada foi catalisadora do alcoolismo e o uso de outras drogas.

“Eu preferi me afastar da família para não magoar eles, porque eu não sou uma ilha. Eu faço mal para as pessoas que estão ao meu redor. Se eu consumo álcool, as pessoas que me amam também estão sentindo. Assim, como sinto falta deles, eu creio que eles sentem falta de mim também. O que os olhos não veem, o coração sente. O melhor foi se afastar e cada um viver a sua vida. Eles já sofreram muito, e eu também”, relata, com lágrimas nos olhos.

Sidnei aponta dificuldades em lidar com o vício e manter a esperança de, um dia, sair das ruas | Foto: Luiz Antonello/O Município

Em meio a isso, a luta contra os vícios se manifesta diariamente. Sidnei começou a fumar aos 9 anos e aos 12 começou a usar maconha. Aos 17 foi a vez da cocaína e, por último, se viciou em crack. “Estou tentando viver e me reconstruir. A dependência química e o álcool não me deixam trabalhar e eu não consigo me estabelecer”, conta.

Sidnei se aposentou pelas questões de saúde, mas teve o benefício cortado e, hoje, recebe o auxílio-doença. “Só que Brusque é uma cidade com custo de vida alto. Não consigo sobreviver com um salário mínimo. E não posso trabalhar por conta da doença, o auxílio que eu recebo não me permite trabalhar. A rua foi o único jeito”, explica.

Ele recebe atendimentos no Centro Pop, local destinado para acolhimento de pessoas em situação de rua. Certas noites, quando não está sob efeito de drogas, procura o Albergue.

Sidnei é uma das cerca de 50 pessoas em situação de rua em Brusque. Este número é uma estimativa feita pela secretária de Desenvolvimento Social do município, Fabiana Silva Santos Gascoin. “O número de pessoas vivendo na rua em Brusque é baixíssimo. No Albergue, dormem em torno de 35 pessoas por noite, por mês temos uma média de quase 100 pessoas. Na rua, estima-se que entre 10 e 15 pessoas passam a noite”, informa.

Apesar da estimativa, Fabiana ressalta não haver um número oficial de pessoas em situação de rua na cidade. No Cadastro Único (CadÚnico), por exemplo, estão cadastradas 590 pessoas, contudo, muitas migram para outros municípios.

Quando tudo se perde

Luiz Antonello/O Município

Antes dos problemas de saúde, por volta dos 20 anos, Sidnei conta que vivia o auge da carreira. Trabalhava como consultor de pessoa física e jurídica na Câmara de Dirigentes Lojistas de Brusque (CDL), fazia Ciências Contábeis na Unifebe e tinha um relacionamento.

O brusquense tem no currículo um curso técnico em eletrônica, além de cursos básicos em informática e em eletricista predial, industrial e residencial.

“Aconteceu o problema de saúde e tudo desandou. Um ano e meio para ter o diagnóstico, oito anos esperando pela cirurgia, uma ação judicial contra o Estado. Muita coisa aconteceu na minha vida para chegar onde estou hoje, tomei decisões erradas, mas nem tudo é culpa minha”, diz.

Ele considera que, para sair da rua, precisa vencer o vício nas drogas. “Eu tento ir no Caps e não consigo por causa do vício, sempre estou recaindo. A gente sabe o que tem que fazer, mas não consigo lidar. Tenho que criar um novo vínculo e uma nova vida”, aponta.

A sensação de impotência perante a dependência química o faz se sentir deprimido. “Três tentativas de suicídio. Tristeza, tem muita coisa marcada lá atrás e influencia até hoje. Ao invés de virar o jogo, fica um tempo e volta de novo”, desabafa.

“Tenho que entender que tenho uma limitação física e vou ter que viver da forma que dá, batalhando todos os dias. Eu quero, mas eu não alcanço. Quero primeiro sair das drogas e depois das ruas, uma coisa de cada vez”, continua.

Apesar dos problemas, ele diz ter esperança que conseguirá se estruturar. “Acredito que eu consigo reconstruir a minha autoestima. Temos que acreditar e agir”, diz. “Enquanto há vida, há esperança”, conclui.

A rua em números

Luiz Antonello/O Município

No Brasil, com base em dados do Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único (Sagicad) do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), 298.071 famílias em situação de rua estavam incluídas no CadÚnico em agosto deste ano, sendo 227.224 dessas inscritas no programa Bolsa Família.

Conforme Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número representa um aumento de 935% em 10 anos. Há uma década, o número total registrado era de quase 22 mil pessoas. A exclusão econômica — que envolve o desemprego, a perda de moradia e a distância do local do trabalho — é citada por 54% das pessoas. A fragilização ou ruptura de vínculos familiares é citada por 47,3%. Problemas de saúde são apontados por 32,5%.

Em Brusque, conforme o sistema de acompanhamento da pasta de Desenvolvimento Social, o Centro Pop atendeu 670 pessoas entre 1º de janeiro e 31 de outubro de 2023. De 1º de novembro de 2023 a 31 de agosto deste ano, foram 509 pessoas atendidas.

Já no albergue, foram 383 e 320 pessoas atendidas, respectivamente. “Os atendimentos podem se dar desde um banho até guarda de pertences. Uma pessoa que é atendida pelo Centro Pop nem sempre passa pelo Albergue. Além disso, uma mesma pessoa pode ser atendida mais de uma vez em um mês”, explica a secretária.

O caminho da rua

Luiz Antonello/O Município

A psicóloga e coordenadora do Centro Pop, Beatriz Fuzeto Ferreira, trabalha com pessoas em situação de rua desde 2018.

Entre as histórias, Beatriz diz que é muito comum o histórico de violências, especialmente na infância. “A gente percebe que o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] prevê que é responsabilidade da família, do estado e da sociedade proteger. E essas pessoas não tiveram suas infâncias protegidas, são muitas violências, de todos os tipos”, explica.

Trata-se de violência física e sexual, inclusive com os homens, que eram meninos na época; violência psicológica; abandono; e negligência. “Elas chegam com muitas dores e feridas [emocionais] para nós, com trajetórias muito difíceis”, continua.

Beatriz faz duas leituras sobre o que leva as pessoas a ficarem na rua. A primeira é a questão do consumo de álcool e outras drogas e a dependência química. Entretanto, há aqueles que não usam drogas e também acabam na rua. “Outro segmento são questões como conflitos familiares e falta de vínculos, pois temos pessoas criadas em instituições ou egressas do sistema prisional, que romperam os vínculos familiares”, explica.

Assim, Beatriz detalha que o Centro Pop recebe pessoas recém-divorciadas e que brigaram com a família. Além disso, aponta que há um público jovem e quase 90% deles são homens entre 20 e 45 anos.

As mulheres, segundo Beatriz, quando chegam ao serviço, trazem um histórico de violência superior ao dos homens, agravado pela exposição que enfrentam nas ruas e pelo machismo. “É sempre mais difícil o atendimento de mulheres, até mesmo o tratamento”, aponta.

A reportagem tentou entrevistar uma mulher em situação de rua. Contudo, mesmo após aceitar dar entrevista, ela saiu do Centro Pop e não retornou ao serviço após mais de uma semana, o que impossibilitou recolher o relato.

Em busca da mãe

Entre os sonhos de Robson, está conseguir um emprego e encontrar um amor | Foto: Luiz Antonello/O Município

Natural de Jardim Alegre (PR), Robson Rodes, 49, não se lembra de quando se mudou para Brusque, mas pensa que devia ter entre 36 e 38 anos. Ele conta que foi parar na rua por conta do alcoolismo.

“Viemos por trabalho, o meu tio veio tocar uma obra aqui. Eu trabalhava com ele, mas tive um pequeno erro com a bebida alcoólica e isso me trouxe consequências. Acabei sendo expulso de casa”, detalha.

Robson recorda que foi morar com os avós paternos e tios em Ivaiporã (PR) quando ainda era um bebê. “Era muito legal, porque minha avó era uma pessoa que me amava. Hoje, ela é falecida, está sepultada no Parque da Saudade. O meu avô era delegado de polícia em Jardim Alegre e foi assassinado por bandidos. Eles que me criaram. Conheci meu pai, mas não tive diálogo com ele. Ele está falecido. Não conheci minha mãe”, conta.

Depois, se mudou com a família para Manuel Ribas (PR) aos 19 anos. “Lá eu jogava futebol, tinha muitos colegas”, lembra. “O momento mais feliz da minha vida foi quando minhas tias no natal me deram um presente e para o meu primo, que era um carrinho do Transformers, que se transformava num robô”, lembra.

Apesar da falta de contato, Robson tenta encontrar a mãe. Contudo, ele apenas sabe que o nome dela é Rosenilda e que, possivelmente, reside no Mato Grosso. “Quero encontrar ela para perdoá-la, por não ter cuidado de mim. Mãe a gente perdoa. Quero entender o porquê ela não quis ficar comigo”, complementa.

A sombra do alcoolismo

Robson começou a beber aos 17 anos. Aos 21, chegou a parar quando morou com uma tia em Sarandi, próximo de Maringá, no Paraná. “Hoje, superei as outras drogas e ainda estou tentando superar o álcool, estou indo para o Caps e faço os meus tratamentos. O Caps está sendo uma experiência de vida”, afirma.

Ele gosta de ler livros e escutar música. À noite, Robson dorme no Albergue, onde entra às 19h. “Teve algumas vezes que não dormi no Albergue por conta da bebida. Muitas vezes o bafômetro me pega e ficava expulso por 10 dias. A falta de equilíbrio nos torna fraco. Às vezes gosto de tomar uma cervejinha, mas estou tentando superar esse vício. Aí durmo em um banco nas praças públicas, ou debaixo de uma marquise para fugir da chuva, ou debaixo do toldo de alguma loja”, conta.

Já Sidnei complementa que vai um dia para o Albergue e no outro não consegue ir. “Prefiro faltar do que vir alcoolizado e não conseguir entrar. Então, durmo embaixo da ponte, dentro de uma lixeira, de baixo numa marquise, com papelão, e esperar que não chova e não precise usar o banheiro”, detalha.

Porém, ele também destaca o trabalho das unidades de atendimento para pessoas em situação de rua. “Graças a Deus, é o que a gente tem. Ainda temos possibilidade, e eles estão aqui para ajudar. Senão, onde eu ia tomar um banho? A ajuda que eu tenho é essa aqui, mesmo que limitada, porque eu tenho que fazer a minha parte”, opina Sidnei.

Apesar dos casos de dependência, Beatriz aponta haver situações em que o consumo de álcool e outras drogas não são questões centrais. Ela afirma que em alguns casos o uso é visto como uma estratégia de sobrevivência.

“Eles vêm para a rua, e, às vezes, a realidade da rua é tão dura que o uso do álcool e outras drogas é uma estratégia de sobrevivência. Não necessariamente que envolva dependência química, mas, em um dia de frio, uma cachaça esquenta. Num dia de muita tristeza, a droga pode trazer a ilusão de um conforto. Ou seja, é uma estratégia de manutenção da situação de rua”, completa.

Alto custo da saída

Luiz Antonello/O Município

Beatriz destaca que Brusque é atrativa pela oferta de empregos, fazendo muitas pessoas buscarem pelo município. “Já atendi pessoas que relataram que o primeiro trabalho formal foi em Brusque. O grande desafio é o custo de vida, que é alto. Hoje, os postos de trabalho que dão essas oportunidades não equilibram esses custos. Às pessoas deixam, às vezes, até 80% de sua renda para o aluguel. Apesar das oportunidades abertas, há demanda para a Assistência Social”, pontua.

Com essa dificuldade em vista, Robson planeja ter um teto para mudar de vida. “Recebo Bolsa Família e estou juntando um dinheirinho para que eu possa alugar um lugarzinho para mim, quando eu sair do Albergue”, aponta.

Pelas manhãs, ele acorda às 6h para sair em busca de emprego. “Peço a Deus para que me dê capacidade na área profissional, para que eu possa crescer e ser um exemplo para a sociedade. Ao invés de ser um morador de rua, que é visto como um lixo, quero estar no meio de pessoas importantes, poder divulgar trabalhos, na arte da música, também, que eu gosto muito”, completa.

Amar é importante

Robson destaca a dificuldade de se acostumar com a situação de rua. “Tive uma vida boa, saia e me divertia, ia nas pizzarias com meus primos, em sorveterias, pescar ou clubes aquáticos para nadar. Foi difícil ficar na rua, é preciso ter experiência de vida, não é para qualquer um. Na rua é perigoso”, inicia.

“É a primeira vez que estou sendo visto como morador de rua. Cada um tem sofrido algo, não tem família, se drogam ou bebem, perdem as esperanças de viver. A vida do morador de rua é assim, eles não se drogam por não serem capazes de suportar a própria dor, mas por falta de amor”, ressalta.

Neste sentido, a principal dificuldade de Robson é a falta de perspectiva para construir uma família. Principalmente, em relação à entrada no mercado de trabalho para o sustento da casa. “Quero encontrar uma pessoa que me aceite do jeito que sou, com os meus erros. Tenho um grande sonho de encontrar uma companheira e a minha família me ver com uma casinha para morar”, diz. “Os bens materiais vêm depois, primeiro vem o amor. Sem o amor você não constrói nada”, completa.

Sidnei também vislumbra um cenário de felicidade. “Eu me enxergaria sendo feliz sem esse problema de saúde e nenhuma limitação. Gostaria de estar com amigos de verdade, com a família, todo mundo reunido, podendo ligar para falar sobre algo bom ou ruim que acontece na vida. Estudar, fazer curso de inglês, passear e fazer coisas que a sociedade ‘normal’ faz. Faz muito tempo que não fico sóbrio, ainda tenho que montar uma estratégia para que isso ocorra”, conclui.

Perigos da rua

Neste ano, cinco pessoas em situação de rua morreram em um intervalo de dois meses em Brusque. As causas das mortes são diversas, mas todas envolvem vulnerabilidade, tanto social quanto psicológica: afogamento no rio Itajaí-Mirim; atropelamento; e doenças não tratadas.

A secretária aponta que o tratamento é ofertado, mas ressalta que há falta de aderência ao tratamento, ou é feito errado, como tomar remédio com álcool, e outros nem sabem que estão doentes.

Sidnei afirma que a rua é complicada e evita andar em muitas pessoas, por exemplo. “Sempre andamos em um ou dois. O perigo vem a todo momento, você pode estar deitado e alguém tacar fogo ou você pode ser espancado. Tem a questão do álcool, os medicamentos que tomo, se ingeridos com álcool, piora a minha situação”, diz.

Mesmo com a sensação de insegurança, Sidnei afirma que é bem tratado na rua. “Não retruco, só abaixo a cabeça. [Se retruco] tem xingamentos, ‘sai daqui, seu nojento’. Me deixam triste, porque quero ser melhor. As pessoas e a sociedade nos olham de outra forma. O que é uma vida normal? Cada um tem uma escolha”, diz.

Robson também comenta que as ruas de Brusque são calmas. “As pessoas nos tratam bem, nunca ninguém me humilhou, nunca ninguém falou mal de mim”, complementa.

“Cada um carrega a sua dificuldade, um passado, não posso generalizar que toda a sociedade escracha ou fala algo ruim dos moradores de rua. Cada um tem uma vida, mas a sociedade quer que seja do jeito que as pessoas acham que é o normal. E eu nem sei mais o que é normal e o que não é”, diz Sidnei antes de cair no choro.

Saúde mental

Segundo Beatriz, é recorrente o atendimento de pessoas com outros tipos de agravos de saúde mental no Centro Pop. A dependência química vem como uma comorbidade. “Então, já tinha outro quadro de saúde mental, como um processo depressivo, e uma forma de lidar com o sofrimento, como o de depressão não tratada, é o uso abusivo do álcool e outras drogas”, ressalta.

Beatriz explica que no Centro Pop não é feito o tratamento de saúde, mas um processo de reflexão e um plano de vida. Caso seja visto uma necessidade de tratamento de saúde, a pessoa é encaminhada para outros serviços.

“Temos o ímpeto de querer resolver a vida do outro, mas o projeto precisa ser da pessoa. É ela que nos fala, diante de todas as adversidades, como vislumbra a vida dela e o que deseja, se existe um projeto de felicidade, e qual é? É uma forma deles se olharem e refletirem essas questões. Falamos sobre como eles ficam em um looping de dor, sofrimento e vícios, e não conseguem sair dele. É o aqui e agora, o hoje, mas precisamos projetar o futuro”, conta.

“A gente precisa, enquanto sociedade, trazer humanidade para essas pessoas. Conseguir olhar para elas para além ‘daquele incomoda’, atrapalha o fluxo das pessoas e que traz o caos. Cada pessoa tem a sua história de vida e sua contribuição para a sociedade. Se a gente começa a produzir monstros, com violência institucional e policial, maltratando e desprezando todos, isso se volta contra nós, pois vivemos em um mesmo mundo”, completa Beatriz.

Sem criar monstros

Beatriz ressalta que a imagem comum da pessoa em situação de rua como alguém que não trabalha é um equívoco. Muitos atuam na informalidade e realizam ofícios na própria rua.

“Eles trabalham muito, mas manter um horário formal para quem não tem um lugar seguro para dormir é muito difícil. Se eu tivesse passado a noite na rua, não estaria aqui às 7h. Às vezes, eles ficam dias sem dormir. Precisamos garantir moradia para todos, mas não há respostas fáceis. Mesmo com moradia, a pessoa pode sentir que não consegue. No entanto, todos podem refletir e ressignificar suas dores. Elas são importantes e estão presentes”, diz.

Para Beatriz, o medo do desconhecido pode transformar as pessoas em “monstros”. As notícias negativas também atrapalham a conscientização social. Segundo ela, é a primeira vez que recebe um jornal de grande circulação para conhecer o Centro Pop e conversar com pessoas em situação de rua.

“As pessoas aqui têm vários talentos. O trabalho e as qualidades deles não aparecem. A mídia tem grande responsabilidade na construção do imaginário social sobre esse fenômeno. É possível abordar o assunto de forma mais sensível e mostrar que essas pessoas não estão inertes”, comenta.

Vencendo a rua

Jardel é considerado um case de sucesso e, segundo ele, incontáveis pessoas em situação de rua se ressocializam  | Foto: Luiz Antonello/O Município

Jardel Silveira de Liz viveu por 15 anos na rua. Hoje, com 42 anos, ele é empresário e tem residência fixa em Brusque.

Natural de Criciúma, teve uma boa infância, apesar de momentos conturbados: o pai também teve problemas com bebidas e outras drogas. “Ele e minha mãe se separaram quando eu tinha de 9 a 10 anos. Me envolvi com drogas aos 13, começou com maconha e cigarro e depois fui para outras drogas”, explica

Sem saber o que fazer com Jardel, o adolescente trocava de cidade constantemente entre as casas do pai e da mãe. Na casa do pai, teve contato com os tios, que também eram usuários de drogas. Na adolescência, ele chegou a ser internado para se desintoxicar algumas vezes, sem êxito.

“Eu e meu pai usamos drogas juntos, ele usava cocaína e eu já estava no crack. Eu que apresentei o crack para ele, que se viciou, depois a esposa do meu pai descobriu. Então, a minha mãe me colocou para morar numa casa de praia, mas acabei montando uma ‘biqueira’ lá, e comecei a vender. Vi que o negócio estava feio para o meu lado, tanto a polícia quanto o traficante queriam me matar”, lembra.

Para fugir desta situação, próximo aos 18 anos Jardel passou a morar na rua. Durante os 15 anos, fazia diversos trajetos a pé, como o caminho entre Criciúma e Florianópolis. Contudo, o vício o acompanhou.

“Me internei pela primeira vez aos 13 anos. Quando eu estava na rua, tentei me internar diversas vezes, mas nunca tive êxito: saía e voltava para as drogas. Na rua, quando eu me sentia mal e sentia que estava prestes a morrer, eu me internava. A última foi na Fazenda Canaã, no Limeira [em Brusque], quando fiquei 7 meses e 27 dias internado. Foi um divisor de águas”, conta.

Jardel saiu da rua aos 33 anos, em 2016. Queria mudar de vida e conta que na Fazenda Canaã reaprendeu a viver. Quem o ajudou foi Jean Merry Harger e a esposa Elisa, Arno Jorge Eberle e Nei Souza.

Brusque como lar

Jardel veio para Brusque em 2008 por conta da Fenarreco e lembra de ter sido bem recebido. “Eu era hippie e fazia artesanato. Brusque era um lugar que eu gostava de passar, principalmente no inverno por ser a terra da malha. Ganhava muita roupa, enchia a mochila e ia embora, andava até Ilhota e ia até Navegantes”, inicia.

Para Jardel, Brusque era um ponto de fuga do crack, diferente das cidades do litoral, onde encontrava muitos usuários.“Era uma cidade bem controlada”, conta. “Procurava ficar com aqueles que bebiam uma cachaça, longe dos ‘noias’”, diz.

Jardel passou por diversos estados. Sempre buscava um lugar propício na rua para dormir: uma obra abandonada, um lugar coberto. “Na minha casa, hoje, tem dois quartos, duas camas box e posso escolher qual que eu quero. Ainda, às vezes olho uma aba ou uma sombra e digo ‘olha, que da hora é esse lugar para dormir ou fazer um descanso’. São coisas que machucam e ficam na mente da gente. Hoje não preciso disso, posso pagar um hotel para dormir. Pessoas normais, que nunca passaram por essa situação, nunca pensariam nisso”, conta.

Para evitar ser violentado, buscava lugares movimentados e com câmeras. Jardel mostra uma cicatriz na cabeça. “Já levei paulada, tijolada, garrafada, já tocaram fogo em mim dormindo, por sorte estava acordado e sóbrio. Na rua, tem o lado bom que é conhecer lugares e tem o lado ruim, que é a maldade do ser humano. E eu vi isso”, completa.

A primeiro e a última droga

Após alta da Fazenda Canaã, ficou três meses na rua, quando foi para Navegantes para trabalhar vendendo picolé e juntar dinheiro. Por lá, conviveu com outras pessoas na rua que eram usuárias de drogas.

“Decidi que não iria usar mais nada. Eu parei com o crack na rua, muito antes de ser internado na Fazenda Canaã, mas continuei a beber e usar maconha. O álcool foi a minha primeira droga e a minha última, a mais difícil de largar. O álcool me deixava feliz para esquecer da situação em que estava, mascarava”, relata.

No final de janeiro de 2017 Jardel voltou a Brusque com R$ 200, quando se juntou ao Jean, Arno e Nei. Ele recebeu ajuda financeira da mãe e de Jean. Alugou a primeira casa do Projeto Vida, no bairro Steffen. “Tirei mais dois da rua. De lá, alugamos a casa atual, desde então tenho ficado sóbrio, já são 9 anos, e Deus só tem me ajudado”, diz. A sede do projeto fica localizada no bairro São Luiz.

Recomeço

Luiz Antonello/O Município

Iniciado em 2009, o Projeto Vida é uma ação de Jean, a esposa dele Elisa e Arno, e no início organizava a distribuição de marmitas. Após a abertura da casa de apoio, já passaram 93 pelo local. Desse total, o grupo estima que 30% se ressocializaram, com a entrada no mercado de trabalho. “Depois da pessoa sair da comunidade terapêutica, tem um lugar para recomeçar”, explica Jardel.

Após o retorno a Brusque, Jardel trabalhou em uma madeireira e em supermercado. Em nove meses, conseguiu alugar uma casa. Hoje, tem a própria empresa focada em limpeza pós-obra. “Tudo o que eu queria, hoje estou realizando. Estou conseguindo vencer na vida graças a Deus, minha força de vontade e o Projeto Vida”, aponta.

Além da situação financeira e profissional, Jardel também encontrou o amor. É casado com Gisele. “Ela é o meu porto seguro e é quem está sempre ao meu lado. Ela também passou por essa situação de rua e de drogas. Eu saí antes e ela também decidiu sair, foi para uma clínica feminina em Guabiruba. Éramos amigos, nos reencontramos e começamos a namorar. Desde então, estamos juntos”, finaliza.

Abordagem social

A secretária aponta que muitos chamados de abordagem social são feitos e afirma que é de grande importância a sociedade ter alguma resposta. Segundo ela, a abordagem precisa ser cuidadosa, tanto no trato com pessoas na rua quanto aos seus pertences.

A coordenadora de Saúde Mental da Prefeitura de Brusque, Inajá Araujo, destaca a relação positiva com a Polícia Militar, que oferece suporte sempre que necessário. Porém, ela enfatiza que é importante avaliar a situação antes de acionar os serviços, pois muitas vezes envolve saúde pública, e não apenas segurança. Em casos de surtos psicóticos, por exemplo, é o Samu quem faz o atendimento, não a PM. Ela também ilustra a diferença entre alguém que comete furtos sob efeito de substâncias e quem age sóbrio, indicando que os contextos exigem abordagens distintas.

“As pessoas colocam todos no mesmo saco, o de vagabundo. Mas avançamos bastante, que agora temos a possibilidade de oferecer esse atendimento. O mais difícil é a questão da dependência química, por outro lado, tem muitos que estão no movimento de superação da rua”, completa a secretária.

Dignidade e moradia

Para além da Assistência Social, Beatriz destaca que os trabalhos com pessoas em situação de rua envolvem outras áreas, como a Saúde, Educação e Habitação. “Se estamos falando de dignidade, estamos falando de moradia”, defende.

Portanto, Beatriz acredita que a solução se dá por meio de políticas públicas. Ela pondera que existem planos, como o “Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua”, lançado em 2023 pelo governo federal.

“Não dá para fazer política pública se não organizar e implantar serviços, sem ter equipe e se não tem dinheiro. É responsabilidade dos três eixos, mesmo que acabe ficando para os Municípios. Todo ano é um desafio para garantir o orçamento para o Sistema Único de Assistência Social (Suas)”, critica.

Em Santa Catarina, a Secretaria de Estado da Assistência Social, Mulher e Família lançou em fevereiro a cartilha “Além das Ruas”. O documento reforça o compromisso do Poder Público com as políticas públicas voltadas à população em situação de rua e a toda a sociedade catarinense.

“Cabe dignidade na rua, como em todos os espaços. Muitas pessoas da sociedade civil nos procuram para tentar ajudar, com arte ou terapia, e estamos de portas abertas para a sociedade”, completa Beatriz.

Consultório na Rua

Recentemente, a Prefeitura de Brusque habilitou uma equipe de Consultório na Rua, que auxilia as pessoas em situação de rua. Inajá explica que o serviço foi credenciado pelo Ministério da Saúde em junho deste ano. A equipe conta com quatro profissionais: psicólogo, assistente social, enfermeiro e técnico de enfermagem.

“Inicialmente não abordaremos nas ruas, mas nos espaços de atendimento, como o Centro Pop. Posteriormente, com a vinda de um carro que está sendo solicitado via Ministérios de Saúde, a gente inicia essas abordagens”, explica.

Neste outubro, o credenciamento e a habilitação da equipe foram formalizados pelo Conselho Municipal de Saúde. “A ideia é possibilitar o atendimento às pessoas que estão em situação de rua, não só moradores de rua, mas indígenas, ciganos e outros, que não acessam os serviços básicos de saúde. Ou seja, liberação de insumos, como camisinhas e fraldas, material para curativos, atendimento médico, vacinação, odontologia”, conclui.

Internação humanizada

Em Brusque, a prefeitura instituiu a internação involuntária por meio Programa Municipal de Internação Humanizada (PMIH) do Município de Brusque. Inajá explica que a internação pode acontecer de três formas: voluntária, involuntária e compulsória.

“A internação humanizada é destinada para pessoas em vulnerabilidade social. Então, o grande diferencial de Brusque é esse. A pessoa pode estar em situação de rua ou não”, explica.

A internação voluntária ocorre quando a pessoa aceita ir fazer o tratamento. Já a internação involuntária é feita após a identificação e necessidades por profissionais de saúde, como médico, e assistente social, e solicitada pela família.

A compulsória, segundo Inajá, ocorre após todos os recursos extra-hospitalares não serem efetivados. “Hoje, muitas pessoas usam álcool e outras drogas em casa e não são perigosas. A internação é destinada para quem está em vulnerabilidade muito grave, que envolve muitas questões”, pondera.

Atualmente, a gestão conta com leitos no Hospital Azambuja e no Hospital de Descanso, considerado uma referência. A unidade é fechada, impossibilitando fugas, e considerada mais adequada para a desintoxicação. O município está localizado a 615 quilômetros de Brusque, no Oeste catarinense, próximo à fronteira entre Brasil e Argentina.

Inajá detalha que a diária de internação é de R$ 224 por leito, com recursos do município. Assim, até este outubro, foram feitas cinco internações e uma sexta está sendo preparada. Além disso, do total de internações, quatro pacientes estavam em situação de rua e outros dois sofriam de vulnerabilidade. Foram três internações voluntárias e duas involuntárias.

Abrigo Municipal

A prefeitura planeja fazer uma permuta do terreno onde atualmente funciona o Centro Pop para a construção de um novo Abrigo Municipal. O local será voltado ao atendimento de pessoas em situação de rua, com funcionamento 24 horas por dia.

O edital da licitação especificará que interessados na compra do terreno devem apresentar um projeto de abrigo que siga os padrões nacionais, incluindo mobiliário e equipamentos permanentes.

A estrutura deverá ficar até cinco quilômetros do Centro e será monitorada pelo Executivo para garantir a adequação às políticas de assistência social do Sistema Único de Assistência Social, assegurando assim um atendimento contínuo, em contraste com o horário limitado do atual Centro Pop.


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