Em nome do pai
Quando eu era recém adolescente e ainda morava em Santos, eu tinha aulas de desenho e pintura – ou melhor, fazia aulas de liberdade! – com a maravilhosa artista argentina Beatriz Rota-Rossi. Eram encontros semanais em que as técnicas eram apresentadas, mas em que o mais importante era descobrir uma visão própria do mundo. Acredito que, nisso, as lições tenham sido mais bem apreendidas do que na arte em si. Não virei artista.
Mas tinha (e tenho até hoje) um amor pelos materiais, pelas cores, pelas misturas, pelo espaço que se transforma. Na época, isso se concretizava nas visitas às lojas que vendiam material artístico. Com suas inesquecíveis bisnagas de tinta a óleo e seus nomes poéticos.
Em uma dessas visitas meio mágicas, meu pai prometeu me dar um modelo para desenho. Eram homenzinhos feitos de madeira, articulados, com proporções corretas. Objetos ideais para incendiar minha imaginação, com suas poses perfeitas e possíveis. Ele prometeu. Eu fiquei esperando.
Mas o tempo passou. Em suas dobras, ficaram as aulas, as telas, as tintas… deixando no lugar lembranças e alguns traços de mágoa, como todo fim de ciclo acaba deixando, por mais justo e necessário que seja.
O boneco? Meu pai esqueceu, eu também esqueci. De vez em quando, meus olhos achavam um desses modelos e eu lembrava do cenário, da conversa, da promessa. Mas passava. Sempre tem algo mais urgente, capturando a nossa atenção. E minha atenção foi de algo em algo, ao longo de muitos anos.
Até chegar o dia da despedida em que, mesmo que a gente lembrasse, meu pai não teria mais como pagar a promessa do presente esquecido. A ausência, como sempre acontece, tomou o lugar dos pequenos gestos que deixamos de fazer a tempo. Aquele eterno arrependimento que acompanha todas as perdas.
Mas as coisas não acabam assim, como a gente pensa. Há pouco tempo, entrei em uma loja dessas de todo dia, pensando e buscando coisas bem rotineiras… e lá estava ele. O modelo. Praticamente igual ao que ficou na memória. De novo acessível. Veja só…
Então, eu substituí meu pai. Peguei aquela promessa que ficou flutuando por décadas e resolvi que, em nome dele, ela finalmente seria cumprida. Por ele. Através de mim. A mão que pegou a caixa era a minha, mas era a dele. Ao chegar em casa e desembalar o modelo, abri um presente esperado há muito tempo.
Obrigada, papai.
Claudia Bia – jornalista que um dia achou que seria artista