Há poucos desenlaces mais dramáticos para uma família que perder um familiar para uma doença infecciosa.  Apesar dos progressos da medicina moderna, ainda perdemos muitas vidas por causa de processos infecciosos, sejam bacterianos, virais, parasitários ou por fungos.

A recente pandemia foi um claro exemplo, porém mesmo em ausência de surtos epidêmicos as doenças infecciosas estão sempre ameaçando nossas vidas. Ao longo de milhares de anos, a nossa espécie tem tido como principal defesa contra os microrganismos nosso sistema imune.

Este sistema consiste num conjunto de células, tecidos e órgãos que agem em conjunto tentando combater qualquer agente infeccioso que invade nosso corpo. O sistema imune é extremamente complexo e ainda bastante desconhecido pela ciência e pelos médicos.

Por exemplo, desconhecemos a causa da variabilidade tão ampla na resposta imune entre as pessoas. Dentro de uma mesma família é comum ter um indivíduo que desde criança é acometido com frequência por todo tipo de doenças infecciosas enquanto seu irmão se mostra resistente e nunca pega sequer uma gripe.

Sem a presença do sistema imune não existiríamos os humanos, nem os mamíferos e provavelmente tampouco organismos multicelulares primitivos.

Em janeiro do ano passado o Instituto Pasteur em colaboração com a Universidade Rockefeller publicou um artigo científico com os resultados da análise do DNA de 2.800 indivíduos europeus encontrados em diversas escavações arqueológicas e cujos dados constam numa única base de dados.

O trabalho mostra a evolução das mutações genéticas durante os últimos dez mil anos, isso quer dizer desde o período neolítico quando nossos antepassados caçadores-coletores abandonaram sua forma nômade de vida para desenvolver a agricultura e criação de gado.

Essas amostras foram comparadas com o DNA de 500 genomas modernos e desenvolveram um programa para localizar variações genéticas acontecidas ao longo desses milhares de anos.

O diretor desse estudo é o geneticista evolutivo Luis Quintana-Murci, professor e pesquisador do Instituto Pasteur e do Collège de France. Das milhares de mutações encontradas, identificaram algumas que proporcionavam vantagens para enfrentar as infecções.

Essas mutações se localizam em 89 genes e resultou surpreendente a descoberta de que ao longo do tempo o ser humano adquiriu esses genes com uma frequência crescente. Significa então que estas mutações vantajosas para nossa sobrevivência foram aumentando devido a uma seleção positiva de adaptação do ser humano ao meio ambiente.

Este estudo confirma a hipótese de que as infecções e os agentes microbianos condicionaram o processo evolutivo da espécie humana. Os primeiros indícios sobre essa influência foram enunciados pelo cientista britânico John Burdon Sanderson Haldane quando ao redor de 1950 postulou que a malária estava associada a uma estrutura característica nos glóbulos vermelhos nas populações africanas. 

Essa estrutura diferente característica da anemia de células falciformes proporcionava imunidade perante a malária. Quer dizer que para se proteger contra a malária era necessário conviver com esse tipo de anemia.  Em resumo, um parasita tinha influenciado para o aumento de uma doença não microbiana nas populações africanas.

O estudo de Quintana-Murci descreve que a maioria destas mutações positivas que dão proteção contra infecções começaram a  aparecer no início da idade do Bronze, faz 4.500 anos. Justamente nessa época houve aumento de migrações e da densidade demográfica que provocaram aumento de doenças infecciosas como por exemplo a peste.

Outra conclusão importante deste estudo se refere ao “preço a pagar”, ao mesmo tempo que o sistema imune aumentava seu poder de combater microrganismos nos tornamos cada vez mais propensos a sofrer doenças autoimunes como o lúpus sistêmico, artrite reumatoide e outras doenças inflamatórias como a doença de Crohn.

Estas doenças autoimunes, embora muitas vezes severas, matam muito menos que as doenças infecciosas, o sistema imunológico se adaptou para enfrentar o perigo maior e esta mudança se inicia com a idade do bronze há 4.500 anos.

Décadas atrás surgia a chamada “hipótese higiênica” que dizia que a chegada das vacinas e antibióticos provocou a diminuição das doenças infecciosas e também o aumento das doenças autoimunes e inflamatórias.

Este trabalho do Instituto Pasteur contradiz totalmente essa possibilidade e dá uma explicação em termos evolutivos deste fenômeno. Em 2021 o Dr. Quintana-Murci junto ao pesquisador Gaspard Kerner publicaram os resultados de um estudo que analisa como a tuberculose, doença que acomete aos humanos há séculos, interagiu com o sistema imune.

Eles analisaram mais de 1000 genomas humanos antigos europeus. O estudo se foca numa variante (P1104A) do gen TYK2, essa variante está associada a um risco maior de sofrer tuberculose.

Essa variante surgiu há mais de 30 mil anos e diminuiu de forma importante há 2 mil anos justamente quando as formas atuais de cepas infecciosas de Mycobacterium tuberculosis aumentaram consideravelmente.

A variante está presente em 2 a 3% da população europeia atual, os portadores estão, portanto, muito susceptíveis a sofrer tuberculose em caso de exposição ao microrganismo. Infelizmente as conclusões destes estudos não podem ser aplicadas a populações de outros continentes. 

O grupo de paleogenômica do Instituto Max Planck de Leipzig comandado pelo cientista Johannes Krause tem se dedicado a estudar como a peste, a praga que mais humanos tem dizimado ao longo da história, tem evoluído desde seu aparecimento.

Graças a seus estudos sabemos que a peste na sua forma inicial aparece há 4900 anos em toda Europa, essa forma de peste provavelmente ainda não era transmitida através das picadas de pulga. 

Essa forma antiga de peste desapareceu há 3500 anos enquanto a forma atual de peste, a peste bubônica, aparece há 3800 anos atrás já tendo como hóspede intermediário as pulgas.

As pulgas e a bactéria da peste, Yersinia Pestis, já formavam uma dupla eficiente e letal, mas tudo indica que foi só com a disseminação do rato preto conjuntamente com o avanço territorial do império romano que se dão as condições para o aparecimento para a primeira grande epidemia de peste no século VI, a chamada praga de Justiniano, imperador vigente que sobreviveu à doença.

Durante os séculos seguintes há relatos de surtos epidêmicos do que seria peste bubônica por toda Europa, até o século VIII houve ao redor de 18 surtos epidêmicos. 

O desaparecimento de surtos de peste no fim do século XIV parece ter sido provocado pela diminuição da população dos ratos pretos, temporariamente a bactéria da peste ficou sem fôlego antes de voltar a atacar. 

A última grande epidemia de peste aconteceu em Marselha em 1720, matando mais de 100 mil habitantes. Muito temos a aprender com as pesquisas de paleogenômica que, simplificando, significa fazer análise do DNA de restos arqueológicos de humanos, animais e plantas.

No futuro poderemos entender por exemplo onde e como surgiram os primeiros casos de doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson, Huntington, ou as doenças autoimunes como esclerose múltipla ou artrite reumatoide. Poderemos então ter novas abordagens nas tentativas até agora fracassadas de conseguir uma cura.