Já conhece Olhos d’Água? É um livro indicado como leitura obrigatória para o vestibular da ACAFE. Eu também não conhecia, nem o livro nem a sua criadora. Mulher, negra, pobre, ex-moradora de favela, Conceição Evaristo é doutorada em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Sua literatura traduz o universo que vivenciou desde a infância, universo marcado pelo preconceito e pela desigualdade social. Segundo um pesquisador da literatura contemporânea, “A obra de Conceição Evaristo tem o objetivo claro de revelar a desigualdade velada em nossa sociedade, de recuperar uma memória sofrida da população afro-brasileira em toda sua riqueza e sua potencialidade de ação.” Certo, concordamos, eu e o pesquisador. Mas a obra de Conceição Evaristo vai além, muito, muito além.
Primeiro, é necessário que se repare no apuro linguístico da autora. Conceição Evaristo enxerta suas obras com uma linguagem poética marcada pela valorização da conotatividade – aquela linguagem figurada de que tanto se fala quando o assunto é “funções da linguagem”. São textos nos quais a riqueza dos enredos é somada à criatividade linguística. Exemplos?! Aí vão alguns: Em “Olhos d’água“, conto que abre a coletânea de 15 textos elaborados pela escritora, lê-se:
o “Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.” (Note-se o uso que a escritora faz da figura de linguagem chamada prosopopeia ou personificação: consiste na atribuição de sentimentos, psicologia e comportamento humanos a seres inanimados e a animais).
- Já em “Di lixão“, conto que trata das misérias da vida de menores abandonados, sem lar, sem afeto e sem casas de passagem, lê-se:
o “Doía o dente. Doíam as partes baixas. Doía o ódio” (Anáfora: consiste em repetir uma palavra ou expressão a espaços regulares durante o texto.)
- No mesmo conto, a autora explora tanto figuras de linguagem como a musicalidade das palavras:
o “Vou matar, vou morrer. É lá no mar que vou ser morrente. Mar-amor, mar-amar, mar-morrente. É no profundo fundo, que guardarei para sempre as lembranças de meu putinho e da dileta minha.” (Em “matar” e “morrer”, temos uma antítese. Em “mar-amor”, “mar-morrente”, etc., a musicalidade que a autora explora ao longo de suas narrativas. Além disso, é de se ressaltar que Conceição Evaristo constantemente inventa novas palavras, utilizando, principalmente, o recurso da composição, ou seja, os neologismos formados pela autora frequentemente juntam substantivos que resultam em uma nova palavra. Logo, trata-se de um processo de criação lexical constante).
Agora, amigxs, preparem-se para os ENREDOS: assim mesmo, em ‘caps lock’. São retratos do cotidiano daquela gente que comumente limpa nossas privadas, recicla nosso lixo, cata nossos restos, mas permanece absolutamente ‘invisível’. Não nos damos conta de suas existências, de suas dores ou de suas queixas. São as “domésticas” – as mesmas que, faz pouco tempo, viviam no “limbo jurídico” sem quaisquer direitos trabalhistas…
Direitos?!? “Que diabo é isso?”, perguntam-se as personagens relegadas aos barracos de papelão das favelas das grandes – e pequenas – cidades brasileiras. São os mais desassistidos, os mais abandonados, os mais marginalizados que protagonizam essas quinze narrativas curtas marcadas por dor e teimosia.
Uma teimosia que não explica a força da mãe carregando sua filha morta por bala perdida. Uma teimosia que não explica a força do menino Lumbiá – do conto de mesmo nome – correndo abraçado ao menino Jesus solitário, a quem ele acabava de “salvar”. Uma teimosia que só se explica em “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, o conto que encerra a coletânea.
Eu, a certa altura, torci para que Davenga, Ana Davenga e o filho que ela carregava no útero sobrevivessem às descargas das metralhadoras das “autoridades”. Torci para que Maria – do conto de mesmo nome – conseguisse chegar ao seu barraco levando os restos da janta da patroa, e que conseguisse dizer ao seu filho mais velho: “Olha, filho, teu pai te mandou um beijo”. Mas Maria era “mulher de bandido”, e como “bandido bom é bandido morto”, também Maria mereceu a morte, linchada por passageiros do mesmo “ônibus” em que trafegamos todos nós.
Pensando melhor, gente. Não leiam, não. Deixa quieto. Leiam resumos, assistam às videoaulas, e deixem de lado esse universo cru, ultranaturalista, revelando a abjeta realidade de mais da metade da população – a população negra – de um “país” inteiro. Eu mesmo, que o li, tenho dificuldades de “digeri-lo”. Consola-me um último período; o último período de “Ayoluwa, a alegria de nosso povo”, que diz assim: “E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução.”
Professor Deschamps