Fila de espera por perícia prejudica famílias e Justiça
Santa Catarina possui apenas um Hospital de Custódia para atender réus com problemas mentais; fila de espera ultrapassa um ano
Santa Catarina possui apenas um Hospital de Custódia para atender réus com problemas mentais; fila de espera ultrapassa um ano
Famílias de portadores de transtornos psiquiátricos que cometeram algum crime e passaram pela Justiça têm de enfrentar uma longa espera em busca de ajuda. Atualmente, em Santa Catarina apenas existe apenas um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) – instituição que substituiu os antigos manicômios judiciais. A unidade – que fica em Florianópolis – é responsável por avaliar e realizar a perícia de, em média, 1,5 mil pessoas por ano.
O HCTP atende pessoas que tiveram passagens pela polícia e que foram enviadas para passarem por algum tipo de avaliação. A primeira categoria de perícias é a sensação de periculosidade. Neste caso, o condenado é enviado ao hospital de forma preventiva e não punitiva. O objetivo do juiz ao ordenar este procedimento é evitar que o portador de doença mental possa cometer novamente um ato criminoso.
Com o resultado do procedimento realizado, o doente pode ser internado tanto no HCTP quanto em um Caps, conforme for o caso. De acordo com a legislação vigente, periodicamente o condenado deve ser reavaliado para que ele seja reinserido ao convívio social assim que não seja um risco para si ou para aqueles que o cercam.
Além disso, o hospital de custódia também tem a incumbência de avaliar os doentes encaminhados de todos os cantos do estado com o objetivo de referendar ou não a sanidade mental deles. Segundo Paulo Henrique da Silveira, gerente jurídico do HCTP, são realizados 700 procedimentos deste tipo anualmente. A perícia toxicológica também é tarefa da instituição.
Este grande volume de atividades que são responsabilidade do HCTP faz com que haja uma fila de espera para perícias. “Para aqueles que estão presos, o período de espera é de até 30 dias, bem razoável. Já para aqueles que estão soltos fica em torno de sete meses”, afirma Silveira. Três equipes de médicos e auxiliares têm que fazer os procedimentos que são imprescindíveis para o andamento de processos judiciais.
Quando um crime é cometido por um portador de doença mental, a defesa pode afirmar que o réu sofre de distúrbios e que não estava em condições de responder pelos seus atos. Esta prerrogativa está prevista no artigo 26 do Código Penal, que diz que “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Neste caso, o advogado alega insanidade mental, contudo, para que isso tenha algum valor jurídico é precisa a chancela de um médico. O juiz faz um incidente processual e encaminha uma solicitação de laudo para o hospital de custódia. Enquanto este documento não volta, o processo não anda porque não se sabe se o acusado é ou não imputável.
Silveira afirma que os réus presos têm prioridade devido à velocidade dos processos que correm contra eles, enquanto que os soltos podem esperar mais. O juiz Edemar Schlösser, diretor do Fórum da Comarca de Brusque, diz que o prazo de espera é longo. “Em alguns casos, o juiz tem que insistir e pedir urgência para que o preso seja atendido mais rápido. O prazo é longo, tem vezes que o juiz pede o agendamento e já recebe a resposta de que o atendimento ocorrerá só no outro ano”, explica o magistrado.
Pacientes
Um dos últimos casos envolvendo um portador de distúrbios em Brusque foi o de Marcelo Reis Pereira, 28 anos. Ele foi preso pela Polícia Militar no dia 26 de agosto deste ano tentando furtar um Camaro amarelo na concessionária Uvel. Depois que o estabelecimento já estava fechado, Pereira pulou o portão da parte de baixo do estabelecimento e entrou na oficina, onde alguns carros que passariam pela vistoria estavam estacionados.
Reis pegou um GM Ônix e dirigiu até a cancela, mas não conseguiu passar dali. Foi então que ele voltou e entrou em um Camaro amarelo. Alguns funcionários ainda estavam na concessionária e chamaram a Polícia Militar, que teve trabalho para prender o suspeito – que tentou correr dos policiais.
Depois de dominado, ele foi levado à delegacia nitidamente sob o efeito de drogas. Sentado enquanto esperava pelo policial civil de plantão, Reis falava sozinho, salivava e sequer conseguia responder perguntas básicas feitas pelos PMs. Ele foi autuado e liberado.
Poucos dias depois, Pereira foi preso novamente. Desta vez ele furtou um Fiat Palio de um casal de Lages que havia chegado há pouco tempo em Brusque. A PM o prendeu de novo, desta vez com uma bucha de cocaína, e o delegado pediu a prisão.
O caso foi para o Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC). “O que me consta é que o advogado dele apresentou comprovação de que ele sofria de problemas psiquiátricos”, diz o juiz Edemar Schlösser. O juiz aceitou a documentação da defesa e o liberou para a família – que, por sua vez, comprometeu-se a interná-lo em uma instituição apropriada.
Segundo Schlösser, Pereira voltou para Buerarema (BA), sua cidade natal, junto com a família. Ele há havia sido internado por duas vezes naquela cidade, mas sem sucesso. O processo contra ele por aqui continua.
Municípios
Um caso que gerou mais repercussão foi o de Alex Capistrano, 24 anos. Ele sumiu de casa no dia 24 de setembro, aqui em Brusque, e até hoje não foi encontrado. A suspeita é de que ele tenha cometido suicídio na ponte do rio Tijucas, em Tijucas. Capistrano, que fora diagnosticado como bipolar aos 14 anos, esfaqueou o padrasto em uma crise e, por isso, a Justiça ordenou que fosse internado em vez de ser preso.
Mesmo com a ordem judicial, diz a irmã dele, Gisele Mirley Capistrano, a família não conseguiu internar Alex Capistrano no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Brusque. Segundo o juiz Edemar, chegou a informação de que o jovem teria ameaçado os servidores do Caps. Para exemplificar a demora na marcação de perícias no HCTP, a de Capistrano chegou somente agora, meses depois da solicitação feita por Schlösser.
Acontece que agora já não há mais a possibilidade de interná-lo, uma vez que ele continua desaparecido. A própria irmã de Capistrano reconhece que acredita que o irmão deve estar morto. Ela foi até Tijucas e pediu para ver as câmeras de segurança de alguns estabelecimentos comerciais por onde o irmão teria passado. “O meu irmão passa em direção à ponte bem próximo do horário que as pessoas informaram que viram o homem se jogando. Além disso, localizei a mulher que viu e ela disse que tem quase certeza que é meu irmão”, disse ela em matéria veiculada pelo jornal Município Dia a Dia no dia em 1º de setembro.
O caso de Capistrano mostra a importância que os Caps têm na prevenção e tratamento de transtornos psicológicos. São neles que a vasta maioria dos doentes se tratam. Em Brusque, há dois Caps – um para doentes mentais, o Caps II, e outro para dependentes químicos, o Caps-ad. Segundo a secretaria de Saúde, eles possuem capacidade de atender até 30 pacientes por turno (são dois turnos diariamente), ou seja, cerca de 60 pessoas passam pelas duas unidades todos os dias.
A secretaria nega que haja fila para o atendimento – que pode durar no máximo 45 dias em regime intensivo -, apesar do episódio de Alex Capistrano. Por meio de assessoria de imprensa, a Saúde informa que todos os pacientes são acolhidos e que não há limite. No entanto, é feita uma avaliação para ver se a pessoa de fato deve estar no Caps. “Porém, se a demanda apresentada não constitui necessidade para inserção neste serviço, é conversado e explicado ao usuário […] Há também casos em que o CAPS não é o espaço ideal para o acompanhamento de determinadas patologias. Nestes casos, após avaliação, são encaminhados para internação em institutos, como o Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina ou para o Hospital de Custódia, quando envolve pessoas com transtornos que cometam algum tipo de crime”, diz a nota.
Em comunicado para a matéria de setembro, a secretaria de Saúde informou que Capistrano tinha sido atendido em 2006 no Caps II, mas teve resistência a aderir ao tratamento. O comunicado também dizia que as determinações judiciais foram cumpridas.
Sociedade trata doentes como criminosos
Paulo Henrique da Silveira, o gerente jurídico do HCTP, afirma que os pacientes do hospital sofrem com o estigma de terem passado pela instituição porque as pessoas não entendem que eles, na verdade, não são culpados. “Todos que estão aqui não tem culpa do ato que cometeram, eles devem ser tratados como doentes e não como criminosos”, diz.
Para ele, é preciso enxergar a situação dos internos como caso de saúde pública e não como caso de polícia. “Eles só cometeram esses atos porque não foram tratados, se fossem, não teriam feito nada disso”, explica.
A marca dos que frequentam o HCTP é tão grande que, às vezes, nem a família os quer de volta. Silveira afirma que há 34 doentes atualmente nas instalações porque não têm para onde ir – os familiares não os querem de volta. Algumas dessas pessoas, diz o gerente, sequer cometeram atos violentos. Ele conta que um interno foi preso e enviado ao hospital por ter furtado a bíblia de um pastor. “O pastor resolveu prestar queixa e ele veio para cá, agora ele ficou com essa marca de ter passado por aqui”, diz.
Com experiência de conviver todos os dias vendo doentes entrar e sair da instituição, Silveira diz que falta atendimento muitas vezes. “Muitos municípios tem dificuldades com os Caps. A prevenção da saúde mental deveria começar lá no agente de saúde na cidade, que deve ser capacitado para informar quando uma pessoa não está bem”, cobra. Apesar da falta de apoio alegada pelo gerente, o hospital de custódia tem investido em uma gama de programas para ocupar e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
São oferecidas aulas de ioga, arte, estudos entre outras. A estrela dos projetos da unidade hospitalar é o Programa de Acompanhamento dos Egressos (PAE). Segundo Silveira, os profissionais mantêm contato com as famílias dos pacientes mesmo depois do atendimento. “Muitas vezes, a família está mais doente do que o paciente. A gente tem que conversar e explicar”.
Por um período depois que os internos são liberados, a equipe do HCTP fica em contato com os familiares a fim de orientar e prevenir novos surtos. “Se a gente liga e ele tem problemas, pegamos o carro e vamos até lá, mesmo que seja longe, para dar apoio. Com o PAE nós conseguimos reduzir o índice de reinternação para menos de 10%”, afirma.