Isso é coisa de criança
– Super-heróis têm que se machucar, sabia mãe?
– Por quê?
– Pra saberem que são fortes, ué!
Terrifiquei e fui longe. Imaginei as mais arriscadas peripécias dele para se tornar um super-herói. Ao passo que o principal estava na obviedade daquela fala. Para ser audaz, paladino, valente, temos que provar. Não basta o querer ser, na fé, na intenção, na ideia, terás que demonstrar, terá de ser fato. Mas, minha ansiedade desencadeou arritmia desnecessária, porque ele está na constatação, na brincadeira, na projeção daquilo que já consegue codificar de nossas relações humanas. Aliás, ele quer tantas outras coisas…
– Mãe, quero voltar pra tua barriga.
– Vix! Também não caibo mais na barriga de minha mãe.
– E do papai?
– Papais não carregam na barriga os bebês.
– Ah! É no colo. Tudo bem também.
Não sei quanto dele quer asas, e quanto quer chão. Não sei o quanto de mim o quer no ventre, e o quanto de mim o quer no ar. No entanto, de repente, ele me embrulha com esta voz, que não é teste, não quer provar nada, muito menos resquício de quem ambiciona se machucar para ser um ídolo. Ele, então:
– Mãe?
– Oi, filho.
– Queria que tua pele fosse um cobertor.
Diria que um super, super-herói, também te deixa embasbacado, pasmado, surpreendido, para saber que comunicou o quanto te ama, na simplicidade de uma única frase.
Isaac é filho do riso, meu riso, e de mais um tantão de gente aí. Ele me alerta, diariamente, a ouvir toda criança e os super-heróis que nelas ainda habitam. Isso inclui as que, vez e outra, passam da brincadeira para um salto da estante para o sofá, o macarrão no nariz, os insetos e areia que comem, as assinaturas que deixam nas paredes de casa ou quando falam o que realmente pensam. Quer atitude mais heroica?
– Mãe, o escuro foi embora .
– sussurrando com o dedo dentro do meu olho.
– É sábado, filho.
– Quê?
Ele ainda não sabia o que “sábado” significava na vida das pessoas neste mundo da máquina. Era dia, oras, portanto viva o dia. Ele despertou e, como uma benção, foi o primeiro a perceber a luz e propagar a boa notícia, de acordo com a vida que ele levava. De acordo com a vida que levava? Como assim?
Não tive outra escolha a não ser levantar, pois aos cinco anos, você aproveita o dia, e o dia não tem necessariamente um nome, é dia. Eu, então, percebi que essa era a vida que “eu” não levava, porque para mim, os dias têm nomes.
Era época da mamadeira, fui cambaleando até a cozinha com ele no colo mexendo nos meus cabelos e mais acordado que nunca. Sempre há a esperança nessas horas que voltem a dormir para que a gente viva o “sábado”. Ao lado da pia, papel e caneta. Anotei o diálogo – um hábito – pois achei linda a saída que ele encontrou para a palavra amanhecer e, de repente, lembrei que eu também esqueço o nome dos dias, uma vez ao ano, nas férias.
Sim, sim. Os dias da semana são importantes, e hoje é isso, não é? Há tempos, para ser mais exata sem exatidão. Além disso, dormir até tarde não quer dizer desperdiçar a vida, até porque podemos aproveitar a noite.
Mas meu dilema vagou na origem dessa história, quando definimos dias e horas e preço para quase tudo! As crianças possuem uma relação muito mais direta com a vida, de encantamento, de susto, que nós adultos já passamos. Será que ao cuidarmos delas, não seja o momento de relembrarmos que dia é dia, qualquer dia, que é vida? Acredito que elas nos dão uma nova chance. A chance de nos surpreendermos com o mundo e questioná-lo.
– Amanhã é sábado, né mãe? Daí quero ficar lá na Sofia até muito noite. Tá?
É, ele agora aprecia os sábados. Não vejo a hora de esquecer os nomes, novamente.