João José Leal

Promotor de Justiça, professor aposentado e membro da Academia Catarinense de Letras - [email protected]

Outono 2023: grito de alvorada das aracuãs

João José Leal

Promotor de Justiça, professor aposentado e membro da Academia Catarinense de Letras - [email protected]

Outono 2023: grito de alvorada das aracuãs

João José Leal

Costumo me levantar por volta das 7h da manhã. Agora, em pleno inverno, não escuto a profusão de sons canoros, trinados dos canários e de outros pássaros que se calam no inverno. Mas, algumas aves não observam esse catecismo ornitológico nem o protocolo meteorológico das estações do ano, que as aconselha ao silêncio hibernal. Uma delas é a aracuã.

Muitas manhãs acordo com o canto, ou melhor, com os gritos estridentes dessas aves de plumagem marrom e pintas brancas em forma de escamas cobrindo o peito e que a ciência ornitológica resolveu chamar de Ortalis Squamata. No passado, não mais de 50 anos, almas sem piedade ambiental, costume ancestral a conduzir o instinto que mata, os caçadores foram implacáveis com as aracuãs e a espécie quase foi extinta da nossa Mata Atlântica.

Nas caçadas dominicais ou de qualquer outro dia da semana, as aracuãs eram alvos preferidos na mira de espingardas que vomitavam fogo e chumbo da morte, que quebravam o silêncio e tingiam com sangue o verde das nossas matas. Lembro-me muito bem das fotos de caçadores brandindo suas espingardas, os troféus sem vida pendurados no cinturão da crueldade, butins de uma vergonhosa e covarde batalha contra indefesas aves. Não era apenas exibição para a posteridade.

Na culinária de uma época sem compromisso com o ambiente que nos garante vida saudável, as aves abatidas, a aracuã das mais preferidas, eram saboreadas em jantares festivos para reverenciar a bravura e a destreza dos heróis matadores de indefesos alvos. Tudo em meio a intermináveis conversas sobre a vida no interior da mata inóspita, o seu silêncio quebrado pelo cantar da passarada e pelo estampido mortífero de um tiro de espingarda. Longas conversas também sobre os mistérios que alimentavam as fantásticas histórias e anedotas repetidamente contadas por caçadores que sempre aumentavam um conto a cada conto.

Felizmente, a natureza é forte. A educação ambiental também muito ajudou e as aracuãs foram se reproduzindo e voltaram aos nossos jardins, quintais e chácaras. Agora, quase mansas como uma ave doméstica, chegam a pousar nas janelas das nossas casas, à procura de alimento e podem ser vistas por toda a nossa cidade.

A natureza negou à aracuã um cantar melodioso. Por isso, talvez tenha lhe destinado a missão de nos acordar com o seu grito de alvorada e nos avisar que é hora de se levantar, mesmo para os que, assim como eu, já estão aposentados.

Muitas manhãs acordo com os gritos das aracuãs. De perto, tão perto que não me deixam dormir, escuto os gritos altos e vibrantes de três ou quatro delas a ecoar pelo quintal da minha casa, como que a chamar ou desafiar as outras distantes companheiras: “venham cá, venham cá”. E, de longe, vem o grito das outras: “não vou lá, não vou lá”.

Não me incomodo com a algazarra. Afinal, são gritos passageiros a dizer que a natureza continua viva. Tomo o meu café da manhã e vou levar frutas para elas e outros pássaros que vivem nas árvores do quintal da minha casa.

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