Senhor automóvel: velhos e novos desfiles
Existiu um tempo em que o automóvel era objeto de luxo, desejo de consumo de muitos ou de quase todos, mas só acessível ao bolso de poucos, muito poucos, uma elite de contar nos dedos. Então, aos domingos e feriados, era moda circular pelas ruas centrais da cidade, de preferência ao redor da praça principal, […]
Existiu um tempo em que o automóvel era objeto de luxo, desejo de consumo de muitos ou de quase todos, mas só acessível ao bolso de poucos, muito poucos, uma elite de contar nos dedos. Então, aos domingos e feriados, era moda circular pelas ruas centrais da cidade, de preferência ao redor da praça principal, a via pública transformada numa passarela a céu aberto para um desfile de puro exibicionismo e de vaidades embarcadas em cima de quatro rodas.
Ao volante, o chefe de família, termo que hoje não é bem-visto por mulheres cheias de modernidade. Ao lado, a rainha do lar, livre do fogão, do tanque e do cabo de vassoura, na única folga semanal. Atrás, uns quatro ou cinco miúdos porque, à época, a prole era ainda missão de honra. Todos vestidos como se fossem a uma festa, formavam um retrato perfeito das famílias ricas das cidades brasileiras dos anos 1960.
Expressão da elite econômica e social de cada comunidade de um país que ainda desconhecia estradas e ruas congestionadas de caminhões e automóveis, aquelas poucas famílias — o casal com seus filhos pequenos — desfilavam lentamente sob o olhar dos que sonhavam com um pé de borracha para também ascender ao topo da escada do prestígio econômico e social.
Os filhos maiores dessa pequena burguesia, jovens de berço sem mão na massa, muitos sem idade nem licença para dirigir, engrossavam também a procissão veicular de uma sociedade profundamente desigual. Aqueles playboys, como se dizia na época, dirigiam o seu Fusca, os mais afortunados até um Karmann-Ghia, a namorada ao lado, mãozinha na mãozinha e outra no volante.
O tempo passou rápido. O avanço tecnológico e a produção em escala massificada permitiu o acesso do tão desejado automóvel à grande maioria dos brasileiros. E, há muito, terminaram aqueles desfiles sociais sobre quatro rodas. Salvo, é claro, o caso dos donos de veículos de mais de milhão de reais — as Ferraris, os Porsches e outras grifes — extravagâncias automotivas que escancaram o paradoxo social de poucos com tanto e muitos com pouco ou quase nada.
Em Balneário Camboriú, os poucos condutores de volantes a peso de ouro fazem questão de exibir suas coroas motorizadas em ruidosos desfiles pelas principais avenidas — de preferência, as avenidas Atlântica e a Brasil — apinhadas de outros veículos, cujos donos, em frente da bomba de combustível, nem sempre têm dinheiro para encher o tanque.
O pior é que os donos desses Cavalos Rampantes não se contentam apenas em exibir os seus troféus motorizados de mais de um milhão de reais. Para chamar a atenção e puro sadismo alteram a descarga do veículo para fazer um barulho ensurdecedor e irritante, que reverbera em meio aos gigantescos paredões de concreto e vidro e que atormenta os tímpanos de quem está no interior do lar ou de quem está a caminhar em busca de saúde para o corpo e de paz para o espírito.