Velhice, cão e bengala
Meu colega de Academia, David Gonçalves, um dos melhores escritores catarinenses, acaba de publicar uma de suas obras – “Sombras do Tempo” – agora, em versão digital, pela Amazon. Trata-se de uma coletânea de excelentes contos em torno de uma temática cada vez mais atual e preocupante, a velhice, tempo em que, segundo o autor, […]
Meu colega de Academia, David Gonçalves, um dos melhores escritores catarinenses, acaba de publicar uma de suas obras – “Sombras do Tempo” – agora, em versão digital, pela Amazon. Trata-se de uma coletânea de excelentes contos em torno de uma temática cada vez mais atual e preocupante, a velhice, tempo em que, segundo o autor, só nos “restam o cão e a bengala como amigos inseparáveis”.
Numa linguagem franca, com seu estilo direto, cortante que por vezes faz sangrar a emoção do seu leitor, com sua prosa que não deixa lugar para confetes e paetês, a obra reúne inquietantes textos sobre a realidade da velhice. Já na apresentação do livro, David adverte que os seus contos são um grito angustiante de revolta contra a vida miserável que a sociedade impõe aos velhos. Para o autor, a eufemística melhor idade “é uma mentira deslavada”, pois com a velhice, vêm “o ostracismo, as doenças, as desilusões”.
David é mais jovem, mas pensamos parelho. Numa crônica publicada neste jornal, já escrevi que envelhecer é administrar perdas. Sim, para mim, a velhice é uma sentença inapelável que nos obriga a conviver com as deficiências e fraquezas acumuladas ao longo da vida que, como sombras inseparáveis, nos acompanham a cada dia, a cada hora da nossa sofrida existência. Quanto mais vivemos, mais escancara a nossa hipossuficiência em face do pesado fardo a ser carregado.
Na ocasião, um amigo e leitor me contestou, me chamou de pessimista. Disse-lhe que assim vejo a realidade e a natureza da vida. Aliás, não só da vida humana, mas a de todo o mundo animal. Disse-me que eu estava exagerando, fazendo um drama absurdo, uma tragédia sem sentido sobre uma fase importante da vida humana. De forma amiga, falou que me via caminhar lépido pelas ruas do bairro e que eu nem parecia ter a idade marcada na certidão de nascimento. Agradeci a gentileza, as palavras de amizade e nos despedimos.
No dia seguinte, ao levantar cedo para a caminhada quase diária, refleti sobre as palavras do amigo. Senti-me mais tranquilo com a minha velhice que, reconheço, não é só convivência com perdas e danos sofridos e com as batalhas perdidas. Não é sinônimo, apenas, de doença e de dor física e mental. É um tempo, isso sim, em que temos que nos dar por felizes quando podemos caminhar com as nossas próprias pernas e pensar com a nossa própria cabeça.
Então, senti-me resignado em poder levantar toda manhã e, mesmo com dores por todo o corpo, ir ao banheiro, lavar o rosto, escovar os dentes e tomar, com as próprias mãos, a dezena de pílulas da vida. Em poder, depois do café da manhã, sair para caminhar, conversar com os amigos, fazer minhas leituras e escrever as minhas crônicas. Afinal a vida é uma caminhada com muitas curvas, muitos atalhos, é verdade, mas sem volta aos tempos de infância ou juventude.
Fiquei mais conformado, mas sinto que meu confrade, David Gonçalves, tem razão, quando escreve que, na velhice, vamos ficando sozinhos e, quando ironiza dizendo que “a gente mata o tempo e ele nos enterra”.
Quanto a mim, não tenho cão, caminho sozinho e, felizmente, ainda sem bengala!