O guarda da fronteira
Os animais vivem dentro de um limite estreito, estabelecido pela natureza. Todos os atos relativos à alimentação, atividade e descanso, prazeres e dores, todas as reações em relação aos perigos e ameaças estão fechados nesse limite. Ele pode ser um pouco mais flexível em uns que em outros. Mais no cachorro e menos no rinoceronte, mais no gato e menos no jacaré, mas ninguém ultrapassa a própria fronteira, fortemente vigiada.
Nós, humanos, que partilhamos com eles a natureza animal, somos muito diferentes. A liberdade, esse dom que recebemos como correlato à nossa natureza racional, torna as fronteiras bastante dilatadas e pouco vigiadas. Parafraseando um grande entendedor da natureza humana, poderíamos dizer que ao porco e ao elefante só é permitido o que lhes convém.
A nós, a liberdade permite que pastemos em campos infestados de plantas tóxicas, ou que nos refresquemos em rios repletos de corredeiras e redemoinhos. A nós, tudo é permitido, embora nem tudo nos convenha. G. K. Chesterton, esse baita intelectual inglês, cuja obra vem sendo redescoberta, afirma que o homem é o único animal selvagem, o único que se rebelou, enquanto os demais permaneceram nos seus limites.
O fato de que nossa fronteira natural não seja guardada por um exército ou delimitada por abismos e águas turvas requer de nós uma atividade constante em avaliar nossas escolhas e decidir pelo que não nos prejudica. Temos que completar com bons hábitos essa parte que foi deixada por nossa conta, esse limite natural que foi deixado em aberto. Deixe uma criança entregue a si mesma, aos seus próprios gostos e caprichos, e teremos um adulto despreparado e escravo de tudo que é vil e desprezível.
Se há algo evidente a qualquer observador atento é o fato de que desenvolvemos uma propensão esquisita para o erro. Há muitas maneiras de errar, mas bem poucas de acertar, e dificilmente acertaremos seguindo o curso das nossas tendências. Daí a necessidade de montar guarda nas nossas fronteiras, estabelecer, com base na razão, no bom senso e na sabedoria acumulada pelas experiências do passado, os limites que a natureza deixou sob nossa responsabilidade.
Há uma lista de recomendações que estão na base da nossa tradição cultural, e que podem nos servir de guia. Ela foi dada ao povo hebreu no deserto como um delimitador de conduta, que deveria distingui-los dos outros povos, dominados por toda sorte de maldade advinda da incapacidade de limitar seus impulsos.
São os Dez Mandamentos, infelizmente tão menosprezados, que poucos de nós talvez sejamos capazes de enumerar corretamente dois ou três deles. Muitos os “decoramos” em algum momento da vida, do mesmo modo como “decoramos” o nome dos afluentes da margem esquerda do Rio Amazonas ou a tabuada do 7.
São vistos como proibições arbitrárias, que impedem a fruição dos prazeres e a felicidade. Quanto a mim, quanto mais vivo, estudo e reflito, mais me convenço de que são ensinamentos preciosos de quem entende como ninguém a nossa natureza, e quer que protejamos nossas fronteiras, para não sofrermos as consequências da nossa falta de limites.