Ser melhor para servir
No final de 2019, recebi do casal Helga e Ernst Kamp o livro “Venho de Além da Montanha Kaf”, a autobiografia espiritual de Murat Yagan, que foi traduzido do inglês pelo casal Kamp e publicado pela Editora da Unifebe. Yagan, falecido em 2013, com quase cem anos, é um iniciado no sufismo, uma espécie de […]
No final de 2019, recebi do casal Helga e Ernst Kamp o livro “Venho de Além da Montanha Kaf”, a autobiografia espiritual de Murat Yagan, que foi traduzido do inglês pelo casal Kamp e publicado pela Editora da Unifebe. Yagan, falecido em 2013, com quase cem anos, é um iniciado no sufismo, uma espécie de misticismo que permeia o islã, mas é anterior a ele, remontando a antes mesmo de Abraão. Através de suas experiências religiosas, veio a descobrir Jesus de um modo muito particular, tendo frequentado uma Igreja cristã, de matiz protestante.
Das muitas reflexões proporcionadas pela leitura, destaco o modo muito peculiar como é trazido à baila o tema da aristocracia. Ele provém de família nobre, de líderes tribais do Cáucaso, e seu treinamento como líder ressalta o espírito de sacrifício que acompanha a verdadeira nobreza. Para além do status, ser nobre é renunciar a uma vida comum, é submeter-se a uma disciplina do corpo e da mente, para tornar-se o melhor que se pode ser e, desse modo, servir melhor à comunidade. Isso lembra o grande mestre espiritual de Yagan, que disse que veio para servir e não para ser servido.
Na cultura contemporânea, corrompida por décadas de desconstrução deliberada, esse espírito de serviço tem quase desaparecido, especialmente na sua dimensão de sacrifício, que apenas os que acessam um nível superior da existência podem compreender. Nessa perspectiva, quem tem um dom, que pode desenvolver mais as suas capacidades deveria compreender isso como um chamado ao sacrifício e ao serviço, e não na perspectiva de adquirir para si vantagens.
Pense num estudante que consegue ser admitido numa faculdade de medicina. Para ser admitido, deve já ter feito muitas renúncias, para poder se preparar para os exames, e precisará se sacrificar muito mais, se quiser se tornar um profissional realmente competente e disponível para servir. Deverá dedicar a maior parte do seu tempo ao estudo severo, que nunca cessará, pois terá que se atualizar constantemente. E para quê? Para curtir a vida depois de formado? Não! Para estar disponível a qualquer hora, para qualquer emergência.
Ninguém deveria se aproximar dessa profissão sem um elevado espírito de nobreza e de sacrifício, mas sabendo que viver apenas para si mesmo pode ser mais cômodo e prazeroso, mas da perspectiva espiritual correta é vil e desprezível. Guardadas as proporções, todos somos chamados ao mesmo sacrifício, como pais e mães, professores, empresários, líderes religiosos.
O tempo de formação, com ou sem faculdade, deve nos preparar para nos tornarmos o melhor de nós mesmos, abandonando vícios e comportamentos egoístas e abraçando uma vida disciplinada e virtuosa, para podermos estar aptos para servir melhor. O espírito do nosso tempo, no entanto, leva a um egoísmo exacerbado, a uma busca frenética para aproveitar a vida, numa perspectiva materialista e frívola, que nos faz muito mal. Não à toa temos decaído tanto na formação intelectual, nos valores morais, nas artes, nas tradições mais nobres.
A nobreza não depende do sobrenome nem do local de nascimento. É um valor que reside no fundo de nossa alma, e que devemos resgatar e desenvolver com o único propósito de servir melhor. Este parece ser o escopo de toda jornada espiritual bem orientada.