Livros e cinzas a 223 graus Celsius: um alerta sobre censura e intolerância à literatura

Por Ricardo Vianna Hoffmann, advogado

Livros e cinzas a 223 graus Celsius: um alerta sobre censura e intolerância à literatura

Por Ricardo Vianna Hoffmann, advogado

Artigos

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Recordemos da noite de 10 de maio de 1933, em Berlim:

“[…] Trajando os notórios uniformes marrons com emblema da suástica, os estudantes invadiram a biblioteca, onde, hoje, fica a Faculdade de Direito da Universidade de Humboldt, e roubaram mais de 20 mil livros escritos por ‘degenerados’ e levando-os à praça pública de Opernplatz (hoje Bebelplatz), no centro de Berlim.

Milhares de pessoas assistiram ao evento com inegável aprovação, enquanto Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, discursava ao lado da fogueira sobre a pretensa ‘reeducação’ da Alemanha. Em meio às cinzas de obras queimadas que voavam pelo ar, uma multidão se aglomerava, encantada com a possibilidade de purificar sua nação.”

O memorial da queima:

Hoje. “[…] Quem visita a praça de Bebelplatz encontra uma lembrança do ato perpetrado contra a diversidade. No chão da praça, é possível entrever por um painel de vidro uma sala branca subterrânea, contendo prateleiras vazias com espaço para 20 mil livros”.

Lê-se no memorial a frase do poeta judeu, Heinrich Heine, escrita mais de cem anos antes do nazismo: “Aquilo foi somente um prelúdio; onde se queimam livros, ao final queimam-se também pessoas”.

O mais recente livro que estão querendo levar à “fogueira” é do escritor, Jeferson Tenório, “O Avesso da Pele”, a obra vencedora do Prêmio Jabuti, que apresenta as relações entre pais e filhos e sobre racismo e violência policial. Seu recolhimento, já começou, nas escolas dos Estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul. Os motivos: “cenas de sexo” e “linguagem imprópria”, aos estudantes adolescentes, as quais passo a transcrever: “xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx”.

Para a historiadora, Ynaê Lopes dos Santos, ao saber da censura, criticou afirmando que, “utilizar moralismo baixo para censurar obra literária é muito mais perigoso do que palavrão que saiu da boca dos seus personagens”.

No Rio de Janeiro, em 2019, quando da realização da Bienal do Livro, o então Prefeito, Crivella, determinou a censura do livro em quadrinhos, no qual um desenho mostrava dois heróis da história se beijando, ou seja, dois jovens, do sexo masculino. Um beijo gay. Entre idas e vindas no Judiciário, o livro foi liberado.

Nova “fogueira” ocorreu em Rondônia, onde a Secretaria Estadual de Educação determinou a retirada de vários livros das escolas estaduais. O “Index Librorum Prohibitorum” da Secretaria Estadual do governo de Rondônia é, conforme o site, “Quatro cinco um: a revista dos livros”, o seguinte: Ana Lee: O mistério da moto de cristal (com Carlos Heitor Cony); Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: Mar de Histórias; Caio Fernando Abreu: O Melhor De Caio Fernando Abreu–Contos e Crônicas; Carlos Heitor Cony: A volta por cima, O irmão que tu me deste, O ventre, Rosa vegetal de sangue, O mistério da moto de cristal (com Ana Lee), Mil e uma noites, O ato e o fato, O harém das bananeiras; Carlos Nascimento da Silva: A menina de cá; Edgar Allan Poe: Contos de terror de mistério e de morte; Euclides da Cunha: Os sertões da luta (sic); Ferreira Gullar: Poemas escolhidos; Franz Kafka: O castelo; Ivan Rubino Fernandes: Guia Millôr da história do Brasil; Machado de Assis: Memórias póstumas de Brás Cubas; Mário de Andrade: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter; Nelson Rodrigues: Beijo no asfalto, O melhor de Nelson Rodrigues, Vestido de noiva (graphic novel), A vida como ela é; Rosa Amanda Strausz: 13 dos melhores contos de amor; Rubem Alves: Todas as obras; Rubem Fonseca: Diário de um fescenino, Bufo & Spallanzani, O melhor de Rubem Fonseca; Secreções, excreções e desatinos, Os prisioneiros, Agosto, Amálgama, O doente Molière, A coleira do cão, O seminarista, Histórias curtas, História de amor, O buraco na parede, Feliz ano novo, Calibre 22;Mandrake, a Bíblia e a bengala; Lúcia Mccartney, Romance negro e outras histórias; Sonia Rodrigues: Estrangeira.

Em Santa Catarina, também em 2019, a jornalista e escritora Miriam Leitão, e seu esposo, o sociólogo Sérgio Abranches, foram “desconvidados” para a 13ª Edição da Feira do Livro, da cidade de Jaraguá do Sul, pela comissão organizadora do evento, por questão de segurança da integridade física dos convidados, após uma movimentação feita por internautas contrários à vinda deles, oposição capitaneada por um advogado, segundo o qual se deu “tudo em decorrência de uma petição eletrônica confeccionada nos princípios democráticos e republicanos”. Será que esses 3,6 mil que assinaram o “abaixo-assinado” têm afixados nas paredes de suas casas uma lista de livros proibidos?

Enfim, os organizadores da Feira do Livro desfizeram o convite, justificando que, diante de “tão evidente clima de instabilidade e animosidade, anteviram a inviabilidade da realização do debate literário “Biblioteca Afetiva”, com a presença da referida convidada”. E, veja leitor, a ironia, o tema do debate literário era “Biblioteca Afetiva”, imagine se fosse“Biblioteca Hostil” ou do “Ódio” ou da “Discórdia”?

A temperatura chegou aos 233°C. Recentemente, em novembro de 2023, o governo de Santa Catarina, acendeu nova “fogueira”, mandou retirar nove livros de escolas públicas, são eles: A química entre nós (Larry Young e Brian Alexander); Coração Satânico (William Hjortsberg); Donnie Darko (Richard Kelly); Ed Lorraine Warren: demonologistas – arquivo sobrenaturais (Gerald Brittle); Exorcismo (Thomas B. Allen); It: A coisa (Stephen King); Laranja Mecânica (Anthony Burgess); Os 13 Porquês (Jay Ascher); O diário do diabo: Os segredos de Alfred Rosenberg, o maior intelectual do nazismo (Robert K. Wittman e David Kinney). E, conforme noticiado pela imprensa catarinense, sob a alegação da “necessidade de adequar as leituras a faixas etárias” e, os livros, foram devidamente guardados “em local não acessível à comunidade escolar”.

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A história catarinense registra, infelizmente, a queima de livros. Era o ano de 1964, nos primeiros dias do mês de abril, o proprietário da Livraria “Anita Garibaldi”, em Florianópolis, Salim Miguel, foi preso por 48 dias e recebeu a notícia, quando lia, na prisão, de que haviam queimado, na rua, bem em frente à livraria, uma pilha de livros.

Eglê Malheiros Miguel, esposa de Salim, em seu relato à Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright, afirmou:

“Quanto à queima da livraria, essa queima ocorreu à tarde e noite. Na manhã seguinte, eu saí do IEE e fui até o serviço de imprensa do palácio saber se tinha alguma notícia do Salim. Quando eu estou indo, assim, vejo na esquina, aquele monte de cinzas, aqueles livros queimados, parecia um choque no coração, saí dali fui até o serviço de imprensa e estava entrando… estava entrando o padre diretor do Colégio Catarinense, e ele dizia assim: ‘gente, o que eu acabei de ver eu só imaginava possível na Alemanha nazista. Não é possível ver esse povo queimando livros’ e isso ficou marcado porque era um padre jesuíta”.

Nossas leis garantem a liberdade de expressão, de pensamento e de opinião. Punindo o excesso. Vejamos:

Está na lei mais importante do nosso país, a Constituição Federal, no artigo 5.º, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento; no inciso IX, está disposto que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Por sua vez, o inciso XIV estabelece que “é assegurado a todos o acesso à informação e, resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no artigo 19, declara que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), no seu artigo 19, parágrafo 1º, dispõem: “Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões” e, no parágrafo 2º, que “toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”. Em seu parágrafo 3º, consta que, “o exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas”.

Será que, como no romance distópico, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, veremos os bombeiros incendiar livros? Penso que não. Mas que, censurar livros nas escolas está virando uma política de Estado, isso está, ou não?

De onde vem isso? Penso que da exploração das massas, dos medos criados pelos maus “líderes”, do não ler, do não pensar, do não refletir, do controle do conhecimento pelo autoritarismo. De governos, que preferem fazer o mais fácil, ou seja, banir e se livrar dos livros, em vez de debatê-los. O fato de evitar discutir o assunto não impede a realidade.

Leitor não permita o controle do conhecimento, não permita que voltem a acender “fogueiras”, não permita que continuem a publicar o Index Librorum Prohibitorum.

“Os livros, enfim, são um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada”. – Manuel da Costa Pinto.

Leitor, proteste: Leia, leia e leia!

Pense nisso.

P.S¹: A temperatura da queima do papel é próxima aos 233 graus Celsius.

P.S²: As listras pretas, no presente texto, são para demonstrar como os jornais eram censurados no período da ditadura militar. Nenhuma linha acima foi censura pelo Jornal O Município, que defende a liberdade de expressão, de opinião, de pensamento e a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias.

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