Médicos, farmácias e indústria farmacêutica – parte 1
Quem circula pelas regiões centrais e comerciais de grandes e pequenas cidades fica admirado pela grande presença de farmácias. Provavelmente, na última década, estabelecimentos comerciais deste tipo proliferaram mais que as igrejas.
A relação entre cliente e farmácia mudou muito nos últimos anos. Não existe mais aquela relação de confiança com o farmacêutico, que muitas vezes recomendava um medicamento que solucionava o problema.
Hoje em dia, as pessoas além de qualidade procuram preço e, neste sentido, aquela antiga farmácia tradicional de bairro está desaparecendo. Não tem condições de competir com as grandes redes farmacêuticas, que conseguem comprar em grandes quantidades com preço inferior.
Neste sentido, a sociedade sai perdendo, porque desapareceu aquele farmacêutico de confiança cuja opinião era sempre uma ajuda adicional para vencer a doença, mesmo que a ajuda fosse psicológica ou de apoio emocional.
Atualmente, nas grandes redes, com inúmeros atendentes de balcão, nem sequer chegamos a saber quem é o farmacêutico responsável.
Conheço pessoas, geralmente aposentados, que gastam mais da metade do orçamento familiar em medicamentos. Para eles, essa compra mensal na farmácia chega a ser mais importante que a compra do supermercado.
Muitas vezes, no balcão da farmácia há necessidade de escolher entre medicamentos de referência, medicamentos similares e genéricos.
A dúvida aumenta porque há situações em que o medicamento similar chega a ter custo inferior ao genérico.
Teoricamente, todo medicamento genérico deveria ter o mesmo efeito que o medicamento de referência, já que passou nos testes de bioequivalência e biodisponibilidade.
É verdade que há situações nas quais o paciente relata não sentir o mesmo resultado após trocar o medicamento de marca pelo genérico. Mas somente quando se trata de fenômenos que podem ser medidos, como, por exemplo, casos de hipertensão arterial, e isso pode ser comprovado. Já na maioria dos casos, parece haver algum componente subjetivo nessa queixa.
Se conhecêssemos com que frequência a fiscalização da Anvisa repete os testes de biodisponibilidade e bioequivalência dos medicamentos genéricos, todos poderíamos ter certeza da sua eficácia. É uma informação que poderia constar na embalagem do fármaco.
Recentemente, duas excelentes reportagens da jornalista investigativa Amanda Rossi, publicadas na Folha de São Paulo, chamaram a atenção de várias entidades médicas e até do Ministério da Saúde.
Na primeira delas, a jornalista descreve que duas grandes empresas coletam os dados das receitas médicas das grandes redes de farmácia e os vendem aos laboratórios farmacêuticos interessados. Isso significa que os laboratórios têm total conhecimento sobre o receituário dos médicos.
Em posse dessas informações, os laboratórios têm condições de orientar seus representantes comerciais em relação aos médicos e às próprias farmácias.
Há muitos anos que conhecia essa prática, porque, antes da existência dessas duas empresas, por várias oportunidades presenciei representantes dos laboratórios coletando essas informações nas farmácias. Simplesmente eles revisavam fardos de receitas.
Evidentemente, com a ajuda de um software, coletar essas informações ficou muito mais fácil.
Sempre estranhei que instituições, como o Conselho Federal de Medicina ou mesmo o Ministério Público, nunca tomassem providências contra essa prática.
Ao final, são informações confidenciais protegidas pelo sigilo médico. Nem paciente nem médico devem sofrer as consequências dessa divulgação.
Recentemente, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) notificou uma grande rede de farmácias, que detém no seu poder uma base de dados de 48 milhões de brasileiros, porque estaria negociando esses dados com empresas interessadas.
Assim, por exemplo, a empresa pôde fazer anúncios específicos na rede social de quem toma polivitamínicos, para citar um exemplo. O mesmo pode acontecer para quem toma antidepressivos, anorexígenos, remédios para dormir, etc.
A Senacon quer saber se os consumidores deram autorização para usar seus dados com objetivos comerciais. É óbvio que não, nunca foi perguntado sobre isso ao fazer um cadastro na farmácia de uma grande rede.
Se esse esquema comercial de colheita e comercialização de dados sigilosos está funcionando perfeitamente, acontece todo o contrário com o sistema público de controle de prescrição e venda dos medicamentos controlados.
O SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados) foi suspenso pela Anvisa em dezembro de 2021 e não foi reativado até hoje. Esse sistema de controle é fundamental para que a vigilância sanitária possa verificar indícios de fraudes e abusos de consumo. Há dois anos a Anvisa decretou que esse envio é apenas opcional.
Basta aqui lembrar o conhecido caso da crise dos opioides sintéticos nos Estados Unidos, que aconteceu por duas décadas, desde 1995. Foi a maior crise sanitária antes do aparecimento da pandemia da Covid-19, houve mais de 500 mil mortes por overdose de analgésicos, principalmente o remédio Oxycontin do laboratório Purdue Pharma.
O laboratório montou um esquema de marketing agressivo com pagamento aos médicos e estimulando a prescrição indiscriminada do Oxycontin. Essa história está muito bem descrita no seriado “Império da Dor” da plataforma Netflix.
Um dos principais fatores que facilitou essa tragédia foi a falta de fiscalização das autoridades de saúde, associada à liberalidade no marketing e à facilidade com que médicos venderam sua reputação.
Lembremos que nesse país está totalmente liberada a propaganda de medicamentos, incluindo a televisão aberta. Os laboratórios gastam uma grande parte de seu orçamento em propaganda.
O Oxycontin foi anunciado como um potente analgésico, algo real, que não provocava dependência, uma grande mentira que matou meio milhão de pessoas. Esse foi o preço da ganância e da negligência. (assunto continuará na próxima coluna).